O livro “Recomeços – História de Vida de João Bento Raimundo”, da autoria de Rui Isidro, é apresentado na próxima quinta-feira, 5 de janeiro, às 18 horas, na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço. Integra a coleção “Pessoas”, da Âncora Editora, que conta já com obras biográficas sobre personalidades como Salgueiro Maia, Ramalho Eanes, Belmiro de Azevedo, Fernando Valle, Edmundo Pedro, Pires Veloso, Melo Antunes, D. Manuel Martins, Sampaio da Nóvoa, Franco Charais, Pezarat Correia ou Fernando de Pádua.
É o primeiro livro do género publicado nos últimos anos na Guarda e surge, mais do que biografia, como uma extensa reportagem, uma revista de oito décadas, que fala de episódios marcantes e protagonistas relevantes da história política e social da Guarda – e do país – na segunda metade do século XX e no século XXI já decorrido.
Ajuda-nos a compreender o que somos e como aqui chegámos, enquanto cidade e região. E o que, pelo caminho, ganhámos e perdemos. Um desbravar de revelações à força das questões matriciais em qualquer género jornalístico: o quê, quem, quando, onde, como e porquê.
Tudo ao longo de 332 páginas em 19 capítulos: Geografias da infância; A rapariga bonita que não ia à Ginástica; Estudantes em Lisboa; O primeiro emprego e o casamento; O regresso à Guarda; A entrada na política; O dirigente sindical; Conclusão do curso e profissionalização docente; O convite para o Instituto Politécnico; De Sá Carneiro a Cavaco Silva; Recuperar o tempo perdido, contra tudo e todos; Uma mulher no Governo Civil; O Príncipe dos Politécnicos; Alvos de um novo ciclo no PSD; Os comunicados do professor; O processo; Resistir, recomeçar; Ficar, servir, construir; Para sempre é para sempre.
O que levou a que a Universidade da Beira Interior fosse criada na Covilhã e não na Guarda, cidade que tinha – de longe – maior tradição e prestígio na educação?
E qual a razão para a Guarda – a cidade da saúde desde o início do século XX – não ter sido contemplada, também ao contrário da Covilhã e de Viseu, com um hospital novo?
Estes são dois dos “mistérios” da história recente da cidade que a obra procura explicar, com base numa profusão de documentos, registos e entrevistas do autor, reunidos ao longo dos últimos anos.
Em pré-publicação, revelamos o capítulo sobre o nascimento do ensino superior na Guarda.
Como a Guarda perdeu a Universidade da Beira Interior
Fundado em 1973 na sequência da reforma de Veiga Simão (ministro da Educação de Marcelo Caetano), o Instituto Politécnico da Covilhã foi resultado da pressão de um grupo de trabalho para o planeamento regional da Cova da Beira, como resposta à crise económica e social provocada pelo encerramento de grande parte das unidades industriais de lanifícios, na cidade outrora conhecida como a “Manchester portuguesa”.
Foi essa reforma profunda do ensino superior que levou à criação da Universidade Nova de Lisboa e das universidades de Aveiro e do Minho. Mas a expansão e diversificação da rede passava também pelos institutos politécnicos e pelos institutos universitários. Os primeiros destinavam-se a ser centros de formação técnico-profissional, aos quais competia “ministrar o ensino superior de curta duração, orientado de forma a dar predominância aos problemas concretos e de aplicação prática, e promovendo o desenvolvimento experimental, tendo em conta as necessidades do domínio tecnológico e no setor dos serviços, particularmente as de caráter regional”, conforme se lê no decreto-lei de 11 de agosto de 1973, assinado por Marcello Caetano, por Veiga Simão e pelo ministro das Finanças, Manuel Cotta Dias. Já os institutos universitários iriam ministrar “ensino universitário com uma vocação dominante ou com um grau de pluridisciplinaridade limitado”, embora conferindo os mesmos graus que as universidades. Seriam, na prática, universidades vocacionadas para ramos específicos da formação. Assim nasceu o de Évora, rapidamente transformado em universidade. E os de Vila Real e Covilhã, inicialmente politécnicos criados em simultâneo com os de Faro, Leiria, Setúbal e Tomar.
O Instituto Politécnico da Covilhã recebeu os primeiros alunos em 1975, com dois cursos que conferiam o grau de bacharelato: Engenharia Têxtil e Administração e Contabilidade. Em 1979 era elevado a Instituto Universitário. E em 1986 deu origem à Universidade da Beira Interior. E o que aconteceu, entretanto, na Guarda?
O Instituto Superior de Informática que não saiu do papel
Para sermos exatos, «a criação do ensino superior na Guarda remonta a uma ideia que podia ter revolucionado a cidade», mas esbarrou na «falta de capacidade ou na resistência às coisas novas que sempre foi caracterizando esta terra» e que redundou «numa tragédia». Foi a morte «de um sonho». E passou-nos ao lado «a oportunidade de termos uma universidade que podia ter sido algo de muito inovador a nível nacional».
Comecemos pelo princípio. O autor do decreto-lei de agosto de 1973 que instituiu o alargamento da rede de ensino superior, o ministro da Educação José Veiga Simão, era um guardense nascido no bairro do Bonfim. E não esqueceu a cidade natal naquela que seria a grande política com que o Estado Novo, prestes a cair de velho, procurava modernizar-se. A Reforma Educativa «era assumidamente uma iniciativa transformadora, de abertura e evolução do regime», recordaria o próprio em 2006, quando foi convidado a fazer o Elogio à Guarda na sessão comemorativa do feriado municipal de 27 de novembro. Decorridos mais de trinta anos, era na sociedade do conhecimento que continuava a encontrar o potencial diferenciador para o desenvolvimento «de uma alta cidade que tem o direito de sonhar mais alto», tal como quando imaginou, naquelas funções governativas, que podia aqui situar-se uma escola para formação superior «em áreas decisivas da revolução tecnológica, então já em curso, como a informática».
Ao abrigo do diploma, seria regulamentada, poucas semanas depois, a criação da Escola Normal Superior e de Informática da Guarda. Iria agregar a Escola do Magistério Primário, que evoluiria para um estabelecimento de “formação e aperfeiçoamento de professores para o ensino primário e em especial para o preparatório”, abrangendo já a docência até ao terceiro ciclo do secundário, e uma unidade para “ministrar cursos superiores de curta duração em domínio científico”, que também “desenvolve investigação” e na qual “poderão ainda ser ministradas disciplinas básicas integradas nas licenciaturas professadas nas universidades”.
Estava, assim, lançado o embrião do que podia vir a ser um instituto universitário. E no ano seguinte, a 16 de janeiro de 1974, o próprio Veiga Simão dava posse, na Guarda, à comissão instaladora. Facto que havia de ser exaltado como “momento que adquire foros de acontecimento invulgar e marca uma data histórica e um dia grande”, num discurso proferido, em sessão plenária da Assembleia Nacional, pelo deputado Manuel Proença. Membro da Ação Nacional Popular (a redenominação, desde 1970, do partido único da ditadura, a União Nacional), eleito pela Guarda, o parlamentar tinha sido professor e diretor da Escola Industrial e Comercial antes de rumar a Lisboa para integrar o gabinete de um familiar, o ministro das Corporações e da Previdência Social, João Gonçalves de Proença, como ele natural da aldeia do Rochoso. Figurou depois na lista às eleições legislativas de 1973, tornando-se no último presidente da comissão distrital do partido (ou da “associação cívica destinada a promover a participação dos cidadãos no estudo dos problemas da Nação Portuguesa”, como referiam os estatutos, uma vez que o regime não permitia a existência de partidos políticos). Na parte da nação que representava, proclamava ter sido “dado um passo em frente no domínio do social, do cultural e do científico”. A criação da Escola Normal Superior e de Informática da Guarda assemelhava-se “a uma esteira luminosa, a indicar à juventude o caminho da ciência, o caminho da valorização humana”.
Imobilismo e desconfiança
A Revolução de 25 de Abril aconteceria três meses depois. Foi a única razão para nunca mais se ter ouvido falar da Escola Superior de Informática da Guarda, criada em 1973? Não. A maior parte das universidades e dos institutos fundados no mesmo ano por Veiga Simão prosseguiu o caminho: Universidade Nova de Lisboa, Universidade de Aveiro, Universidade do Minho e Universidade de Évora. E vários institutos politécnicos. Incluindo o da Covilhã, que em 1975 recebia os primeiros 143 alunos. De resto, o período revolucionário nem sequer tinha anulado o decreto-lei de agosto de 1973, ao abrigo do qual todos os estabelecimentos prosseguiam os planos de instalação. Tanto que, quando foi finalmente substituído por outro, datado de julho de 1976, não determinou a extinção de nenhum deles.
Pelo contrário, considerava-se que “o desenvolvimento adquirido por várias destas escolas e a necessidade de criar estruturas que facilitem a transição para o regime normal de gestão democrática, comum a todas as escolas do ensino superior, justificam desde agora a introdução de algumas alterações ao referido diploma”. Estes termos de evolução tranquila tornam-se mais revelantes quando olhados à luz da época instável que o país vivia. O decreto-lei era subscrito por Vítor Alves, ministro da Educação e Investigação Científica do último governo provisório, que teve Pinheiro de Azevedo como primeiro-ministro.
Então o que falhou? «Falhou a Guarda no seu conjunto», resume João Raimundo. «Por muito que houvesse vontade política por parte de alguns filhos desta terra que continuavam a destacar-se no plano nacional», as ideias esbarravam «no conservadorismo, no imobilismo, na desconfiança em relação a tudo o que era novo». É imperativo situar os acontecimentos com rigor histórico e lembrar que «ao mesmo tempo que o ensino superior arrancou na Covilhã, arrancou também na Guarda». Com uma diferença substancial: «a Covilhã arrancou com cursos de papel e lápis, que pouco se distinguiam na altura», ao passo que «a Guarda podia ter arrancado com qualquer coisa de inovador nas áreas das informáticas». «Estamos a falar no ensino da informática nos meados da década de 70!», sublinha. É possível apenas imaginar «o marco histórico que isso podia ter representado para esta cidade», pelo impacto que só encontraria paralelo na abertura do Sanatório, em 1907. «Para mim sempre foi claro que a Guarda só podia afirmar-se pela excelência na saúde e no ensino. Quando deixámos de investir numa destas áreas, ou em ambas, veio o definhamento».
A falta de força para segurar o que outras cidades tinham conseguido manter, apesar do período conturbado de 1974 e 1975, explica o que aconteceu a seguir. «Se o ensino superior, criado na mesma altura na Guarda e na Covilhã, tivesse continuado com o mesmo ritmo nas duas cidades, qual delas teria ficado com a universidade?», questiona João Raimundo. Não é uma pergunta retórica, nem a resposta é influenciada por nenhum género de bairrismo. «Era a mais pura das realidades: não há dúvidas nenhumas que, entre a Guarda e a Covilhã, a Guarda ganhava e ficava com uma universidade, mesmo que tivesse de ficar uma faculdade de engenharia na Covilhã». Os pressupostos estavam a nosso favor. «Tínhamos tradição e prestígio nacional no ensino do Magistério Primário e da Enfermagem. Tínhamos um Liceu que era dos melhores do país e onde os alunos da Covilhã vinham fazer o sexto e o sétimo anos, porque lá não havia. Tínhamos uma boa Escola Industrial e Comercial». «Éramos uma cidade de educação», resume.
A Universidade Popular que o pai de Mário Soares quis abrir na Guarda
Além disso, a Guarda estivera quase a ter uma universidade, no alvor da República. Uma Universidade Popular, precedendo o movimento liderado por Bento de Jesus Caraça, que preconizava “o fim da oposição habitual entre cultura de elite e cultura popular, não havendo lugar a distinções, no sentido de que deve tender a dar a cada homem a consciência integral da sua própria dignidade e o conhecimento completo de todos os seus direitos e de todos os seus deveres”, como se lia no manifesto. A libertação pela educação e pelo conhecimento, um objetivo revolucionário dos primeiros republicanos.
A verdade é que a Guarda tinha estado na dianteira deste movimento, graças ao impulso do primeiro governador civil do distrito após a proclamação da República, o pedagogo João Lopes Soares (pai de Mário Soares), aqui colocado devido à formação religiosa, numa estratégia que passava pelo envio, para as regiões mais católicas, de políticos que pudessem despertar a confiança das populações no novo regime, procurando conter as incursões de resistência monárquica. João Soares encontrou um grande aliado em José Augusto de Castro, diretor do jornal O Combate, o órgão do Partido Democrático, mas enfrentou a oposição dos jornais ligados à Igreja e aos setores conservadores, como A Guarda e o Distrito da Guarda.
Mas só o facto de a cidade poder ser precursora daquilo que hoje se designaria como “cursos livres” desencadeou, à época, um vivo debate na imprensa local. E a ideia da Universidade Popular ganhou adeptos de peso, incluindo os médicos Amândio Paul, Lopo de Carvalho, Ladislau Patrício e Arsénio Botelho, ligados ao Sanatório, e os mais reputados professores, advogados, oficiais e comerciantes da Guarda. Só que, tal como a Primeira República, seria uma euforia breve.
A Guarda desistiu de lutar pela Universidade da Beira Interior
Sessenta anos depois, ninguém parece ter lutado pela Universidade da Beira Interior. «Perdemos por falta de comparência», afirma João Raimundo. O que se deveu, também, a «não termos as pessoas com a fibra necessária, no local certo e no tempo certo». Ao contrário da Covilhã. Logo após a criação do Instituto Politécnico na cidade vizinha, foi nomeado presidente da comissão instaladora aquele que tinha sido, na prática, o pai da ideia. Duarte Cordeiro Simões era secretário-geral do grupo de trabalho para o Planeamento Regional da Cova da Beira, que anos antes defendera a criação do ensino superior como forma de conter a crise social e económica decorrente do definhamento da indústria têxtil.
Duarte Simões granjeara também prestígio como professor e diretor da Escola Industrial e Comercial Campos Melo. «Souberam ir buscar um homem de ação ao ensino secundário». Que não era um académico com grande carreira, mas «um professor de contabilidade, que também era dono e gestor de empresas». Similitudes. Em outubro de 1974, em pleno processo revolucionário, iniciava funções à frente do Politécnico. Passado um ano, chegavam os caloiros e era inaugurado o primeiro polo de salas de aula e laboratórios, no edifício da antiga Real Fábrica dos Panos, que tinha servido de instalação militar. E cinco anos depois estava concluído o processo de conversão em Instituto Universitário.
O primeiro reitor foi Cândido Passos Morgado, um antigo aluno do Liceu da Guarda, oficial da engenharia aeronáutica militar, que deu o impulso decisivo à transformação do Instituto Universitário em Universidade da Beira Interior. Recordado como «personalidade forte e de grande visão estratégica», foi sobretudo «um homem de obras, do terreno, que se lançou na construção dos novos polos académicos». Tudo o contrário, afinal, do irmão. Formado em Físico-Química, com uma carreira profissional e académica nas áreas da Física e da Física Nuclear que iniciou em Angola e prosseguiu em Moçambique, Avelino Passos Morgado regressou à Covilhã após a independência das ex-colónias e tornou-se professor de física mecânica no ainda Instituto Politécnico, em 1978. Cinco anos mais tarde, já nos quadros do Instituto Universitário, foi nomeado para presidir à primeira comissão instaladora do recém-criado Instituto Politécnico da Guarda.
Sim, estávamos em 1983, já a Covilhã avançava para a instituição da Universidade da Beira Interior, mas na Guarda o ensino superior levava, em relação à cidade vizinha, praticamente uma década de atraso. Embora a génese de ambos partisse do mesmo decreto-lei de 1973. Só que em 1976, quando o último governo do PREC (Processo Revolucionário em Curso) harmonizou o diploma à nova realidade política, já se iniciava na Covilhã o segundo ano letivo.
1980: o ano da criação do Instituto Politécnico da Guarda
Mas na Guarda seria necessário esperar pelo sexto governo constitucional e por um decreto-lei do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e do ministro da Educação, Vítor Crespo, que criava em agosto de 1980 os institutos politécnicos da Guarda, de Leiria, de Portalegre e de Viana do Castelo. Aqueles que, por qualquer razão, tinham ficado para trás. Cuja fundação se tinha deixado “caducar”.
Mesmo assim, o IPG mais não seria, naquela versão reaparecida, do que a Escola do Magistério Primário com outra roupagem. Em 1981 era criada a Escola Superior de Educação da Guarda. E um ano depois faziam-se as primeiras designações. A 30 de setembro de 1982 saiu a nomeação de Avelino Passos Morgado para presidente da comissão instaladora do Instituto. E no mês seguinte a de Manuel Proença para presidente da comissão instaladora da Escola. Passos Morgado era professor na Covilhã mas, apesar das novas responsabilidades e da distância entre as duas cidades, pôde continuar em funções docentes no Instituto Universitário da Beira Interior.
Manuel Proença, o deputado que exaltara, no crepúsculo da Assembleia Nacional do Estado Novo, a criação da Escola Superior de Informática na Guarda, era agora diretor da Escola do Magistério Primário, cargo que deixaria a Manuel Luís do Santos, para exercer as novas funções a tempo inteiro (ao contrário do presidente do IPG), no que seria depois auxiliado pelos membros nomeados ainda nesse ano para a comissão instaladora: António Salvado Morgado e Anabela Galhardo Valério do Couto. Ainda assim, todos tomariam posse apenas em 1983. Ou seja: os primeiros três anos da segunda tentativa para a existência de ensino superior na Guarda perderam-se em minudências administrativas. Contudo, formava-se uma enorme expectativa em relação ao projeto, no desejo de que viesse a dar resultados já no ano letivo de 1983/1984. Só o concelho da Guarda contava então quase seis mil alunos nos níveis preparatório e secundário (entre os atuais 5.º e 12.º anos de escolaridade). Um potencial enorme.
A primeira versão do IPG, além de letárgica na ação, era limitada nos horizontes. O plano físico consubstanciava-se na remodelação do edifício da Escola do Magistério Primário e, eventualmente, na construção de algumas instalações próximas. Mas, até então, todo o espaço de que o Ensino Superior Politécnico dispunha – e, na prática, necessitava para os fracos anseios – era um apartamento de três assoalhadas, num prédio nas traseiras do Hotel de Turismo, onde funcionavam os serviços das comissões instaladoras. Sem qualquer impacto económico na cidade para além, eventualmente, do pagamento da renda e dos salários. Um instituto que não saíra do decreto e não tinha nem professores nem alunos. Situação que o perfil arcadiano e contemplativo de Avelino Passos Morgado não ajudava a inverter. Não era um homem de ação, ao contrário do irmão Cândido. Tanto que, naquela altura, correu uma teoria mais ou menos jocosa para tão inusitada nomeação: a indicação do próprio irmão teria sido a forma de o reitor do Instituto Universitário da Beira Interior garantir que o Instituto Politécnico da Guarda nunca faria sombra à futura Universidade.
A explicação talvez fosse, porém, outra. Mas igualmente pouco lisonjeira, porque decorria da ausência de massa crítica. Do mesmo modo que dois irmãos, Álvaro e Manuel Lambelho Ramos, eram eleitos no mesmo dia presidentes das Câmaras da Covilhã e do Fundão, Cândido e Avelino Passos Morgado podiam dividir, sem mais delongas, a direção de duas instituições de ensino superior vizinhas. As soluções correspondiam, bem analisadas as coisas, ao grau de exigência. Afinal, entre 1974 e 1982 também não se dera conta de especial protesto, na Guarda, pelo atraso na implementação de um legítimo anseio. A “coletividade pacífica de revoltados”, caracterizada por Miguel Torga, encontrava expressão na Guarda. Com raras exceções, destacando-se nelas o governador civil, João Gomes, e o presidente da Câmara, Abílio Curto.
A situação muda quando, decorrida a primeira metade do ano 1983, se percebe que as aulas estarão longe de começar. E estabelece-se a comparação com o que acontecera, anos antes, na Covilhã: Instituto Politécnico criado em 1973, comissão instaladora a funcionar em 1974, primeiros 143 alunos, nos cursos de Engenharia Têxtil e Administração e Contabilidade, no outono de 1975. Com uma revolução pelo meio. Tudo do zero, sem a integração de um estabelecimento existente nem edifício onde já funcionasse. Na Guarda, pelo contrário, mesmo o facto de a Escola Superior de Educação ter absorvido a Escola do Magistério Primário não veio a constituir qualquer vantagem, funcional ou física. Tudo continuava em demorada fase de estudo e reflexão. Numa palavra, parado.
1983: o ano do começo anunciado (e falhado)
Levantaram-se, finalmente, várias vozes. E os responsáveis sentiram-se obrigados a jogar à defesa. Existia um único jornal na cidade, o semanário católico A Guarda, que em julho de 1983 questionava em toda a largura da primeira página: “O Instituto Politécnico da Guarda na hora da arrancada?”. Contrariando a habitual brandura, o órgão da diocese assumia uma postura reivindicativa e muito crítica em relação à derrapagem das expectativas. “Vamos ver se nos entendemos”, lia-se no artigo, não assinado, do jornal dirigido pelo cónego José António Sanches de Carvalho. “O último comboio vai passar; esta é a oportunidade de o apanhar”. Um alerta em tom muito duro, criticando a demora na simples concretização “da reconversão do edifício do antigo Colégio do Sagrado Coração de Maria, onde vai funcionar a já criada Escola Superior de Educação da Guarda”, ou seja, o imóvel da Escola do Magistério Primário, que só se perspetivava que pudesse ter nova utilização “em 1983”. Seria preciso esperar mais três anos.
Aquela parecia ser, definitivamente, a solução para as instalações do Instituto Politécnico da Guarda. Avelino Passos Morgado mais não fez do que tentar replicar o modelo que conhecia, com o qual o Politécnico e agora Instituto Universitário se tinha implantado rapidamente na Covilhã, reabilitando zonas urbanas abandonadas, numa cidade de orografia irregular. O conceito seria transposto até no detalhe que o presidente da comissão instaladora costumava referir com especial vaidade: um corredor suspenso, que atravessaria a Avenida Alexandre Herculano e ligaria o edifício da Escola Superior de Educação a um possível segundo polo, a criar nos terrenos da Quinta do Alarcão. Inspirado, portanto, na passagem superior sobre a Rua Marquês de Ávila e Bolama, na Covilhã, que ligava os primeiros edifícios da futura Universidade da Beira Interior. Antigas fábricas reabilitadas, quase uma década antes, num contrarrelógio de cerca de um ano. Na Guarda seriam ainda necessários três anos, correndo tudo bem, para adaptar o que sempre fora colégio religioso ou escola pública.
Encontrar um terreno para uma construção de raiz, que definisse uma nova centralidade na Guarda e acolhesse futuras perspetivas de expansão, estava fora de causa. Em declarações ao mesmo jornal, o diretor da Escola Superior de Educação, Manuel Proença, cortava rente quaisquer horizontes largos. “Se fosse possível sonhar e viver alheado, por momentos, da realidade económica que nos cerca, não haveria nada mais atraente para quem assumiu a responsabilidade da sua implantação nesta cidade do que idealizar um complexo politécnico onde várias escolas superiores tivessem assento, formando aquilo que é denominado por um campus educacional e tecnológico. Mas isso não é possível e julgo que a reconstrução do atual edifício do Magistério, como já referi, terá capacidade para poder ministrar o ensino a 270 ou 300 alunos, aproximadamente”.
Pareciam assim colocados os termos da ambição da Guarda no desenvolvimento do ensino superior. Sonhar era proibido.
Um T2 por detrás do Hotel de Turismo
Em 1984 era criado, finalmente, um primórdio de corpo docente. Eram os pioneiros, que tinham concorrido à vinculação na Escola Superior de Educação, aos quais o Ministério da Educação facultava o acesso a um programa de mestrados, muito em voga naquela década, nas universidades de Boston (EUA) e Bordéus (França), para lhes ser atribuída a definição das linhas programáticas dos futuros cursos. Contavam-se, neste grupo, professores de Língua Inglesa (Joaquim Quadrado Gil e Vasco Oliveira e Cunha), Ciências da Natureza (Maria Joaquina Prazeres e Maria Leonor Saraiva Teixeira), Ciências Sociais (António Rodrigues Carita), Expressão Plástica (José Alberto Saraiva), Língua Portuguesa (José Manuel Mota da Romana), Didática do Francês (Maria Adelaide Lopes), Análise e Organização do Ensino (Emília de Sousa Andrade), Educação Física (Augusto Reis) e Ciências da Educação (Beatriz Canário).
Um grupo que já não cabia no apartamento T2 do Largo de São Francisco. O presidente da comissão instaladora lamentava-se. “As nossas reuniões têm de realizar-se em locais ad hoc, no café, no hotel, em casas particulares, etc”, diria Avelino Passos Morgado em entrevista ao semanário A Guarda. E as novas instalações? Estariam “para breve”, esperando o responsável “que o projeto sobre a reconversão da atual Escola do Magistério seja entregue no Ministério das Obras Públicas em junho de 1984 e que as mesmas tenham início em outubro ou novembro, para o arranque das quais já existe verba disponível”. Faltava levar a bom termo as “diligências para ter o edifício do Magistério devoluto a partir do ano letivo” que terminaria no verão desse ano.
As acusações e pressões provinham de todos os quadrantes. Ao ponto de, em fevereiro, o ministro da Educação, José Augusto Seabra, se ter visto obrigado a uma deslocação à Guarda, unicamente para abordar o futuro do Instituto Politécnico. Reuniu com os membros das comissões instaladoras e com presidentes de câmaras, governador civil, deputados, conselhos diretivos de escolas secundárias e outras entidades. O estado de espírito foi resumido numa declaração do autarca da Guarda, Abílio Curto: “se as pessoas não servem, demitem-se”. Mas o ministro limitou-se a anunciar que “se vão ponderar as prioridades sem entrar em precipitações” e a defender a necessidade de “todos trabalharem para acelerar o processo de implementação do ensino superior da Guarda, de modo que ele corresponda a um contexto de desenvolvimento económico e social desta cidade”.
O presidente da Câmara continuava a exigir uma mudança drástica. Abílio Curto denunciava a “ação negativa” de Passos Morgado, que classificava como “prejudicial para os interesses da Guarda e do distrito”. E insistia na demissão da comissão instaladora, que, revelava, solicitara “já várias vezes” ao ministro da Educação.
Veiga Simão: “É uma vergonha”
O ambiente crítico acentuou-se quando Veiga Simão regressou à Guarda em funções governativas. O último ministro da Educação Nacional do Estado Novo era, em 1984, ministro da Indústria e Energia do nono Governo Constitucional, liderado por Mário Soares e suportado por uma coligação PS/PSD que ficaria conhecida como Bloco Central. E nessa qualidade voltou à cidade natal para lançar o projeto da barragem do Caldeirão e apadrinhar a criação da associação de empresários que daria origem ao Núcleo Empresarial da Região da Guarda (NERGA). Recordando a já longínqua reforma educativa de 1973 e fazendo ponto de situação das instituições de ensino superior desde então criadas em todo o país, Veiga Simão declarava que “é uma vergonha” o atraso no arranque do Instituto Politécnico da Guarda. Apesar de consensuais, aquelas palavras causaram estrondo político. Era um ministro socialista a entrar no terreno de um membro do governo nomeado pelo PSD.
O episódio não gerou divisões, até pelo contrário. Um mês depois desta visita do ministro da Indústria e Energia, o colega da Educação estava de novo na Guarda. E vinha acompanhado pelo vice-primeiro-ministro, Carlos Mota Pinto, também do PSD. Presença que deu mais significado às duras palavras que José Augusto Seabra dirigiu às comissões instaladoras do IPG e da ESE, recomendando-lhes “realismo”, pois “não basta apresentar projetos abstratos”. Para acentuar o desagrado, o governante afirmava que “a comissão instaladora não pode ser uma comissão instalada”, admitindo, se necessário, “uma remodelação”. Alguém acolheu a deixa, demitindo-se? Ninguém. Ao invés, o presidente da comissão instaladora da Escola Superior de Educação ainda observaria que “a frase sobre a comissão instalada não tem razão de ser”. Mesmo assim, Manuel Proença levaria quase dois meses a reagir. Passos Morgado permaneceu em silêncio.
Na Assembleia da República, a deputada Marília Raimundo, que integrava a Comissão de Educação, denunciava o “sono letárgico” em que se encontrava “mergulhado o ensino superior na Guarda”. E em meados de 1984 era o governador civil, João Gomes, quem declarava que “a situação tem de ser definitivamente resolvida, pois não podemos estar dependentes da vontade de uma comissão instaladora, cujo presidente não tem nenhuma espécie de apoio das forças vivas da cidade e do distrito”. O então representante do Governo anunciava, segundo registava o semanário A Guarda, que iria deslocar-se a Lisboa, na companhia dos presidentes das câmaras e dos deputados eleitos pelo distrito, “para dizer ao senhor ministro da Educação e ao senhor secretário de Estado do Ensino Superior que está chegada a hora da rutura” com os nomeados para o IPG.
Naquele impasse, o diretor da Escola do Magistério Primário dizia não saber se continuaria a ter instalações ou se teria, sequer, escola. Como se anunciava, havia dois anos, a conversão do edifício para a nova Escola Superior de Educação, Manuel Luís Santos dirigia ao governador civil e ao ministro da Educação perguntas simples: “Vamos ter de abandonar as atuais instalações? Quando? Para onde? Quando seremos informados?”. Ao que João Gomes responde que “a construção da futura escola superior não terá, infelizmente, qualquer viabilidade nos tempos mais próximos, em virtude da inépcia revelada pela comissão instaladora do IPG”. O governador civil reafirma ter “exigido ao senhor ministro uma nova comissão instaladora”.
Manuel Santos Silva não quis
José Augusto Seabra deixaria o cargo de Ministro da Educação no início de 1985. Seria substituído por João de Deus Pinheiro, que nomearia António de Almeida Costa para secretário de Estado Adjunto e Joaquim Pinto Machado para secretário de Estado do Ensino Superior, mais tarde substituído por Virgílio Meira Soares. Foi esta equipa que começou a fazer alterações na estrutura instaladora do Instituto Politécnico da Guarda.
António Salvado Morgado e Anabela Valério do Couto foram dispensados da Escola Superior de Educação. E foi também nomeado um conselho científico, que até aí não existia. Júlio Pedrosa (futuro reitor da Universidade de Aveiro), Carlos Galaricha, Jorge Arroteia e António Ribeiro Miranda (da mesma universidade), bem como Luísa dos Santos Veiga (na altura ligada à Universidade de East Anglia), eram já nomes de referência na área da educação. Com tais escolhas, o Governo tentava recuperar o tempo perdido.
Avelino Passos Morgado não tardaria a ser exonerados. João de Deus Pinheiro assinou, a 4 de junho de 1985, o despacho que punha fim à polémica presidência da comissão instaladora, iniciada quase três anos antes, sem resultados. Faltava encontrar um substituto.
O nome que circulava como mais provável para liderar a nova fase do Instituto Politécnico da Guarda era o de Manuel Santos Silva. Natural de Valhelhas, no concelho da Guarda, tinha sido o primeiro doutorado pelo Instituto Universitário da Beira Interior, depois de uma pós-graduação em Engenharia Têxtil e do início do doutoramento, em França. «Foi mesmo opção minha apresentar a tese de doutoramento na Covilhã, e tive de esperar por isso alguns anos, por questões legais, já que se tratava de um instituto universitário em transição para uma universidade, mas fiz questão de ser o primeiro doutorado», recordaria. Uma questão de «afirmação da própria instituição, à qual eu, com muita honra, estava ligado desde a primeira hora», ou seja, desde o Instituto Politécnico da Covilhã.
Na Guarda tinha completado o ensino secundário, tal como muitos da mesma geração, porque «comecei por frequentar um colégio em Belmonte, mas depois, na hora de seguir para o liceu, o meu pai, que era um simples agricultor, mas tinha grande visão, escolheu mandar-me para a Guarda, porque na Covilhã não havia sexto e sétimo anos». «E na realidade, o estabelecimento de referência em todo o interior, naquela altura entre as décadas de 50 e 60, era o Liceu Nacional da Guarda», confirma. «Tinha fama de ser um dos maiores alfobres de licenciados do país. Para aqui vinham alunos de toda a região, encontrar uma formação sólida que lhe permitia prosseguir os estudos. Devo, por isso, ao meu pai, o ter podido vir para esta cidade que era a grande exportadora de conhecimento na altura». Terminado o Liceu, ingressou no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, como bolseiro. No último ano do curso «comecei logo a colaborar com o Politécnico da Covilhã, por convite do primeiro presidente da comissão instaladora [Duarte Simões], que queria que eu, e muitos outros jovens licenciados, estivéssemos envolvidos no lançamento da nova instituição».
Santos Silva interveio ativamente no processo de transformação do Instituto Politécnico da Covilhã em Instituto Universitário da Beira Interior. E recorda que na génese da designação estava «uma ideia de instituição regional, com polos em Castelo Branco e na Guarda». «Naquela altura, em 1979, o que a Covilhã propôs foi que na Guarda ficaria a formação de professores, porque já havia tradição, e em Castelo Branco ficariam as Ciências Sociais e Humanas, o que incluiria o ensino de Artes, que estava a começar a desenvolver-se», revela. Na cidade-sede ficariam «os cursos de Engenharia e Ciências Empresariais». À Guarda poderia calhar, ainda, «um novo tipo de formação, ao nível de licenciatura, na área da Enfermagem, como já acontecia nalguns países da Europa», tendo em conta a existência da Escola de Enfermagem. Em síntese, defendia-se «um Instituto Universitário tripolar, com abrangência numa área geográfica a que pela primeira vez se chamou Beira Interior, julgo que precisamente por causa da nossa proposta». Em frequência, «previa-se que cada um dos polos viesse a acolher 750 alunos».
O que falhou? «Aquilo que falha ainda hoje: rivalidades sem sentido entre as três cidades e os respetivos atores políticos, que temem ficar na dependência uns dos outros». Antagonismos mais difíceis de ultrapassar a sul do que a norte, porque «o Instituto Universitário estava sediado na Covilhã, mas a capital de distrito era Castelo Branco». Nas eleições autárquicas de 1979 «houve até um responsável político que fez um comício, em Castelo Branco, contra a extensão do Instituto Universitário, exigindo um Instituto Politécnico». Por outro lado, «a ideia desta instituição universitária partilhada nunca foi do agrado do então diretor-geral do Ensino Superior». Refere-se a Eduardo Marçal Grilo, um homem do distrito de Castelo Branco, que viria a ser ministro da Educação. A ideia foi posta de lado com a criação dos institutos politécnicos em Castelo Branco e na Guarda. E cada instituição fez o seu caminho. Manuel Santos Silva seria o segundo reitor da Universidade da Beira Interior. Um guardense, tal como o antecessor, Cândido Passos Morgado, e o sucessor, João Queirós.
Quando se colocou a hipótese de Manuel Santos Silva vir presidir à comissão instaladora do IPG, já a criação da Universidade da Beira Interior estava adiantada e o professor de Valhelhas em vias de integrar o quadro de catedráticos. Era muito de seu, também, o que se alcançava na Covilhã. Nas abordagens que confirma terem-lhe sido feitas, sem especificar por quem, «tal cenário foi logo posto de parte». Preferiu corresponder ao pedido do ministro da Indústria e Energia, Veiga Simão, «com quem colaborei na criação do primeiro Centro de Desenvolvimento do Interior, que foi aqui na Guarda»
O IPG, tal como os outros politécnicos, «ia corresponder, naquela altura, e a ideia acabava por ter a sua lógica, num modelo de inspiração francesa de ser um centro de desenvolvimento de uma formação mais técnica e profissionalizante». Um formato diferente do das universidades, a que teria de corresponder um perfil distinto de liderança, não necessariamente proveniente do meio académico.
O governador civil, João Gomes, queria uma decisão “rápida, mas consistente e adequada” e exigia a nomeação “de alguém que pusesse as mãos à obra”. O presidente da Câmara, Abílio Curto, defendia “um obreiro, uma pessoa de ação, para nos ajudar a recuperar todo o tempo que já perdemos”. Os dois dirigentes do PS, que alimentavam rivalidades de protagonismo, neste ponto estavam inteiramente de acordo. João Gomes revelava, noutra entrevista, estar em condições “de assegurar que dentro de muito pouco tempo vai ser nomeado o novo presidente da comissão instaladora do Instituto Politécnico e que será a pessoa certa”. Especulou-se acerca de vários nomes, sobretudo da área socialista, tal o consenso que ambos mostravam.
A escolha recaiu num militante do PSD. Não necessariamente por isso, ainda que a nomeação fosse feita por um governo de coligação dos dois partidos, o “bloco central”. Mas por se tratar de um empreendedor, novo, com provas dadas como gestor. Sem carreira académica, mas figura conhecida e respeitada no meio educativo, como dirigente sindical. Respeito que granjeara no terreno e não em gabinetes. Tinha a fama de travar, com êxito, combates difíceis, como o que provocara o rombo na unidade sindical sonhada pelo PCP, feito que lhe concedeu prestígio junto das forças políticas moderadas, tanto de esquerda como de direita.
Um maquinista para pôr o comboio em andamento
Foi assim que, poucas semanas depois de ter completado 42 anos de idade, João Bento Raimundo recebeu a chamada para se deslocar ao gabinete do ministro da Educação, João de Deus Pinheiro. Garante que «não ia à espera de nada, porque encarei o pedido para uma reunião como apenas mais um, normal no quadro dos contactos frequentes que tinha com os ministros e secretários de Estado, enquanto parceiro sindical».
Além do ministro, estava presente o secretário de Estado Adjunto, Almeida Costa. João Raimundo nunca esqueceu cada palavra ali proferida. João de Deus Pinheiro foi direto ao assunto: «disse-me, com aquela informalidade que o caraterizava, “eu tenho um problema na Guarda, que é o Instituto Politécnico. Está ali um comboio parado e eu preciso de um maquinista e quero que você seja o maquinista para pôr o comboio a andar”». Antes que tivesse sequer tempo para pensar, Almeida Costa, «que também era uma pessoa afável e prática, acrescentou: “terá sempre todo o nosso apoio”». Era como que um pacto de regime, firmado pelo ministro do PSD e pelo secretário de Estado do PS, para que não houvesse dúvidas quanto ao conforto político do desafio e da decisão que viesse a tomar. O Presidente da República, Ramalho Eanes, tinha acabado de dissolver o Parlamento e convocar eleições antecipadas para 6 de outubro. Mas o Governo queria resolver, antes, o problema do Instituto Politécnico da Guarda, para que não se tornasse matéria de arremesso eleitoral. E, não existindo no horizonte outro cenário que não o da vitória do PS ou do PSD, a escolha do novo presidente da comissão instaladora era validada por ambos os partidos. A decisão, João Raimundo tomou-a ali mesmo, sem hesitações. «Se calhar foi num repentismo, de quem gostava de fazer coisas, mas respondi-lhe: “senhor ministro, se me der carvão para a máquina, tem aqui um maquinista e vamos pôs o comboio a andar”. E ele disse-me “era mesmo o que esperava de si e vou nomeá-lo”».
A analogia com a máquina a precisar de carvão não teria apenas a ver com as origens de João Raimundo, mas com o próprio ambiente político. Dois anos antes, nas eleições legislativas de 1983, ficara famoso o cartaz do PSD, com o desenho de uma locomotiva e a promessa de “sair da crise a todo o vapor”. O filho de ferroviário era, pois, o condutor que trazia esperança a um comboio avariado, sem passageiros e sem rumo.
O então secretário de Estado Adjunto e da Educação corrobora o relato e confirma que a nomeação, que subscreveu em conjunto com o ministro, recaiu numa «pessoa extremamente expedita e acima de tudo um bom gestor». António de Almeida Costa diz ter presenciado, a partir daquela reunião de julho de 1985, «a verdadeiro nascimento do Instituto Politécnico da Guarda», que se tornou «no grande objetivo, na grande obra, do gestor incansável e pragmático» que era João Raimundo. «E fez uma obra notável, que ficou à vista de todos». «Creio mesmo que a foi obra mais significativa na Guarda, em muitas décadas», resume o antigo governante.
[Excerto do Capítulo 9: O CONVITE PARA O INSTITUTO POLITÉCNICO]