A metamorfose política

A mutação política está em curso.

A maioria constitucional do centrão acabou.

O bipartidarismo esfumou-se. A polarização também.

As pessoas fartaram-se do “mainstream”.

A extrema-direita deixou de ser um partido irrelevante para ser um partido charneira do sistema político.

Foi uma surpresa para muitos. Mas a realidade mostra-nos que o resultado das eleições legislativas é o espelho do processo em curso por essa Europa fora. Existe um partido dominante do sistema, e depois, logo a seguir, a extrema-direita. Era expectável que chegasse a Portugal. Quanto muito, existiu um “delay”, como em tantas outras matérias.

O novo sistema português tem uma analogia interessante com o atual Parlamento Alemão. Ou seja, a mesma cronologia ideológica: o PSD com a CDU; o Chega com a AfD; e o PS com o SPD.

As semelhanças são totais, mas esbarram no mais importante. Na Alemanha existe sempre estabilidade numa plataforma de alianças ao centro. Em Portugal isso não é “popular”. E com a agravante de o gap ideológico ser menor no nosso país — onde dois partidos social-democratas (PS e PSD) têm mais afinidades do que o centrão alemão: SPD e CDU.

É um problema ideológico?

Não é, portanto.

É cultural? Talvez.

Estamos ainda muito presos a preconceitos ideológicos, e muitos deles anacrónicos. No futebol, duas equipas são incapazes de partilhar o mesmo estádio. E quase nunca existe fair play na valorização do que o adversário faz bem.

Na política, não é diferente. Olhamos para a sociedade a preto e branco, num mero confronto de ideologias. Quem sai deste registo é um traidor. Ora, se pela paixão somos intolerantes no futebol, o radicalismo ideológico é um péssimo serviço ao país. E é pela blindagem do regime aos fanáticos ideológicos que a Alemanha nos dá lições.

Depois, conseguimos o feito de copiar o pior. Por exemplo, foi preocupante o voto jovem nos dois extremos (esquerda e direita), e curiosamente foi ainda mais significativo na Ex-RDA (Alemanha de Leste). Como explicar, em 2025, um voto pró-nazi e pró-comunismo?

Uma só explicação: o TikTok.

O que vai na cabeça destes jovens?

Qualificados e inteligentes, mas permeáveis?!

É irresponsabilidade ou “fashion”?

Sobre o Resultado das Eleições

AD

Ganha claramente as eleições, dada a diferença para o segundo.

Não foi uma maioria maior, mas uma minoria ligeiramente maior.

Teve mais 140 mil votos, o que fica aquém das muitas classes profissionais beneficiadas com os cheques de Montenegro. O Chega subiu 247 mil votos. Votos esses que não foram para o bloco AD. São um voto de protesto (contra PS e PSD), o que significa que o voto ideológico baixou nestas eleições. Pela primeira vez, uma hecatombe do PS não deu uma maioria clara ao PSD.

Luís Montenegro

Montenegro tinha muitas fragilidades, mas tinha o trunfo maior.

A estabilidade.

Vejamos,

Quase sempre um PM é reeleito (Passos Coelho não foi, mas foi o partido mais votado). E sempre que um PM caiu por moções de censura ou confiança, foi reforçado significativamente pelo voto popular (aconteceu com Cavaco e António Costa).

Ora, o povo tem sempre razão. Quer estabilidade, e por isso premeia sempre o incumbente.

De resto, Montenegro não tinha muitos outros trunfos para apresentar ao eleitorado. Certo que só tinham decorrido 11 meses de governação. Mas não se consegue descortinar nenhuma reforma estrutural, ou que pelo menos fosse iniciada (como lembrou, e bem, Passos Coelho). A degradação dos serviços públicos (do anterior governo) ficou agora num patamar ainda mais crítico. As contas certas e a folga orçamental (do anterior governo) esfumaram-se, e só não são críticas hoje graças aos lucros da CGD. Passar cheques para resolver um problema só acarreta mais problemas.

E depois a economia. A contração em cadeia do PIB no primeiro trimestre não é um bom prenúncio. O regresso ao défice pode estar na curva seguinte.

Montenegro tinha um só cartucho. Disparou, venceu, mas agora a espingarda ficou vazia.

André Ventura

É simultaneamente um líder carismático e populista.

Comunica bem e é tremendamente eficaz na mensagem para o seu eleitorado. Tem o engenho de procurar e encontrar inimigos para alinhar as suas tropas e depois capitalizar politicamente. Assim foi nesta campanha. Passou-se por vítima em várias fações. Apelou às emoções de um povo que é emotivo e valoriza as emoções.

É muito interessante analisar o contexto vitorioso do Chega nestas eleições. O Chega ganha no seu “terreno”. E aí ganhou nas duas últimas eleições: um caso judicial (António Costa) e um caso de conflito de interesses (Montenegro).

O Chega brilha quando o regime enfraquece.

O Chega cresce quando emergem as imperfeições da democracia.

O Chega emerge quando outros cedem à apologia ideológica.

É claramente o vencedor destas eleições.

Pedro Nuno Santos

Foi sempre errático na estratégia que delineou.

Desde muito cedo a colagem à extrema-esquerda era uma tática suicida. As eleições em Portugal sempre se ganharam ao centro e no espaço da social-democracia, partilhado por PS e PSD.

Errou na forma e na substância da mensagem.

Fez uma campanha com o mesmo registo de há 20 anos: não percebeu que existe uma transformação da base eleitoral, que as expectativas dos jovens estão em mutação, e que se estava a afastar dos setores mais dinâmicos da sociedade, como os empresários, os empreendedores, os que têm iniciativa na inovação e na ciência.

Os clichés do passado já nada representam no presente.

As pessoas são hoje mais exigentes e com necessidades maiores e mais dispersas.

Errou também no conteúdo da mensagem. Por exemplo, na insistência no papão da privatização da Segurança Social. Ou ao passar a ideia de que as empresas eram uma segunda ou terceira prioridade.

Errou na insistência, até à exaustão, do caso Spinumviva. Não porque não tivesse razão, mas porque lhe retirou o foco da mensagem como candidato a PM. O estatuto de candidato a líder de Governo não se esgota no protesto.

Depois, tentou arrepiar caminho para uma imagem de moderado. Apesar de uma mensagem mais realista na imigração e de uma medida positiva do IVA zero para tempos difíceis, a sensação é que já vinha tarde.

Voltou a não estar bem no discurso da derrota.

Em democracia, serve-se a política ganhando e serve-se a política sabendo perder.

PS: e agora?

Faltou autocrítica.

O PS perdeu o seu pensamento crítico, fragilizou-se e envelheceu.

Perdeu a classe média, os jovens e os intelectuais.

O PS precisa de se revigorar, mesmo que tenha agora de fazer o caminho das pedras.

Primeiro, o novo líder deve viabilizar os orçamentos da AD em prol da estabilidade. A seguir, deve abrir um debate interno, pragmático e com autocrítica:

  • Que coloque o partido ao centro, na matriz social-democrata.
  • Que se focalize nos novos problemas da sociedade, que premeie o trabalho, a inovação, o mérito, o conhecimento, o talento, e com espírito reformista eleve o país para uma nova ambição.

Se assim for, e ao contrário de muitos, julgo que o PS pode ser uma alternativa credível a médio prazo.

Tem quadros capacitados para um projeto de transformação do país. Deixo alguns nomes no espaço da matriz social-democrata europeia: Duarte Cordeiro (um dos mais brilhantes da sua geração), Fernando Medina, Mário Centeno, Sérgio Sousa Pinto, José Luís Carneiro.

Para onde vamos?

A pergunta que se segue é: até quando estes movimentos populistas globais vão crescer?

A resposta que encontro é: até o poder os desacreditar.

Governar é cada vez mais difícil.

Governar é cada vez mais desagradar.

Mas os que pensam governar com soluções fáceis para problemas difíceis vão acelerar a corrosão dos mesmos.

Hoje, o regime está em causa.

Adormeceu.

Não faltam diagnósticos e debates. O problema é que todos querem mudar o mundo, mas nenhum aceita mudar-se a si próprio.

O confronto do populismo com a realidade virá.

O embate na parede será brutal.

Os descontentes de hoje com a democracia serão guerreiros no futuro.

Às vezes sofremos mais na nossa imaginação do que na realidade.