De novo: Portugal 0-1 Grécia

Corria o ano 2004. Portugal disputava uma importante final do Euro contra a Grécia. As expectativas eram altas, e faziam antever a vitória como inevitável. Mas o resultado do jogo de abertura (também contra a Grécia) parecia agoirar o desfecho final. Portugal acabou por perder 1 – 0 no Estádio da Luz, e a Grécia vencedora do Campeonato Europeu.

Mas, afinal de contas, por que motivo, benévolo leitor, o convido a reavivar tal funesto episódio da história do futebol português? 

Não sendo naturalmente sádico, faço-o tão só porque, ainda hoje, verifico que a Grécia continua a marcar golo contra Portugal. 

Refiro-me, pois, ao mediático processo “Marquês”.  

Se é verdade que o ordenamento jurídico é hoje marcado por uma ciência jurídica aguçada – com uma Constituição da República e um Código do Processo Penal particularmente garantísticos (e bem!) do arguido (Cfr. Art. 202° CRP), pela independência e imparcialidade dos tribunais, por um sistema misto, do tipo acusatório com aspetos inquisitórios -, não posso, porém, deixar de recordar, por associação, o julgamento do seu homónimo ateniense: Sócrates, o filósofo!

Fora, é certo, condenada à indecorosa pena de ingestão de cicuta.

Mas não terá sido esta pena mais digna e salutar do que aquela a que José Sócrates foi popularmente sentenciado?

A constituição de arguido, cumpre lembrar, consubstancia a pedra angular de um processo penal justo e equitativo. Trata-se do reconhecimento de um estatuto processual que permite a participação ativa e passiva no processo: de o arguido ser ouvido; de estar presente; de conformar o processo; de se remeter ao silêncio; de ser assistido por defensor, de ser informado, et cetera.

Todavia – e paradoxalmente-, o que processualmente é tão positivo, axiologicamente representa um verdadeiro anátema. 

É certo que o cometimento de um crime põe em causa os fundamentos e as pedras basilares da convivência social e, desse ponto de vista,  interessa a todos – o que, aliás, justifica a regra da publicidade no processo. 

Mas a verdade é que a administração da justiça incumbe aos tribunais em nome do povo (cft.2002ºcrp) -, e não ao povo, em nome dos tribunais.

Urge, por isso, refletimos coletivamente na forma como encaramos socialmente o processo penal. 

É absolutamente subversivo de todo o sistema que um processo penal, que parte da presunção inocência até ao trânsito em julgado (e não até à mera prolação da sentença recorrível…), e que exige um juízo de certeza para além de dúvida razoável para que haja condenação– por respeito ao princípio in dúbio por Reo – seja, parte integrante de uma sociedade que, pelo contrário, olha para o visado–  muitas vezes mero suspeito – com animosidade, culpa, e julgando-o popularmente, nos termos do artigo…“onde há fumo há fogo”.

Evoco Enrico Ferri, ilustre jurisconsulto italiano, ao afirmar que enquanto o código penal é a magna carta dos criminosos, o Código do Processo Penal é a carta das pessoas honestas, o que faz sentido já que qualquer pessoa pode ser visada num inquérito. 

Com efeito, o Ministério Público, enquanto titular da ação penal tem, em regra, legitimidade para, oficiosamente, promover o inquérito, sem quaisquer constrangimentos ou limitações, recebida a notícia do crime. Ou seja, verificados os pressupostos fáticos e jurídicos de que depende a sua atuação, está obrigado a agir, não estando na sua disponibilidade quaisquer margens de oportunidade (salvo raríssimas exceções) ou subjetivismos.  

Repita-se: Recebida a noticia do crime, o MP está obrigado a abrir inquérito. Por isso, aos iluminados que histrionicamente concluem pela demasia de meios de defesa, advogando a sua supressão: votos de que nunca sejam visados!

Mas voltemos a Sócrates… e Sócrates. 

Na “Apologia de Sócrates”, Platão relata que Sócrates, confrontado com o conselho de Hergémones para examinar a sua defesa, responde o seguinte:

“Mas talvez o deus (…) na sua benevolência, me esteja a facultar não só o momento mais agradável, na minha idade, para dar por concluída a minha vida, como também a morte mais fácil. De facto, se me condenarem agora, é óbvio que me será aplicada a morte que é tida como a mais fácil por aqueles que se dedicam a estas matérias, a menos penosa para os meus amigos, a que traz a maior saudade pelos mortos, porque não deixa lembrança, nem de vergonha nem de pena, no pensamento dos companheiros; antes, põe término à vida enquanto o corpo e a alma ainda têm capacidade de demonstrar entendimento. Como é que não será forçoso que se sintam saudades de quem morre nestas circunstâncias?”

José Sócrates não foi ainda julgado ou sentenciado. Mas já é culpado, há mais de uma década, de todos os crimes e malfeitorias, por uma sociedade sedenta de culpados e por uma imprensa que confunde liberdade de informar com formatar.

Sócrates, o filósofo, teve uma morte instantânea e indolor; 

Sócrates, o político, tem tido uma morte lenta, cozinhado em lume brando, usado como bode expiatório, para gáudio de uma magistratura que reserva para si o estatuto de impoluto.

Não é preciso ter grande sensibilidade jurídica para perceber que o processo contra José Sócrates foi, deveras, iníquo: detenções espetaculares, transmitidas em direto à chegada a Lisboa, sob o pretexto de “perigo de fuga”; garantias processuais, como a aleatoriedade da escolha do juiz, por força do princípio do juiz natural, colocadas em causa…

Mas o que me deixa com particular asco, é a malicia e perversão inerentes à divulgação de escutas telefónicas. Repare-se que o mero uso regular desta medida coativa já representa, por si só, uma restrição intensíssima da esfera jurídica do arguido, por ser absolutamente intromissiva da reserva da sua vida privada. Pior: não nos esqueçamos que o arguido não fala sozinho!

Como se explica, então, a sua ampla difusão pelos meios de comunicação social? 

Falamos de dezenas de interceções e gravações de comunicações telefónicas que foram minuciosamente divulgadas com um propósito claro: convencer a opinião pública da culpabilidade de José Sócrates. 

Terá sido por soberba de quem se julga impoluto, e altivo? Para obter validação popular, daquilo que a não tem a quem de direito?  Ou terá sido, pelo contrário, para evitar qualquer vergôntea politica que pudesse ainda surgir? 

De qualquer das formas, foi assim, de forma simples e cristalina, através de chamadas entroncadas e descontextualizadas, que Sócrates, sem contraditório e muito menos sem julgamento, acabou inapelavelmente sentenciado.

Fica aqui, para futuro, uma sugestão de programa à jornalista Conceição Lino. Interroguemo-nos: e se fosse consigo?  Até quando vamos permitir esta hecatombe? 

Pessoalmente, admiro o senhor engenheiro José Sócrates, não só pela intrépida postura que tem revelado, numa luta manifestamente desigual, que já começou perdida e em que qualquer um de nós, nestas condições, estaria num estado decrépito, mas principalmente por reconhecer nele profunda qualidade politica – uma raridade aos dias de hoje!

E para aqueles que tornitruantemente evocam o estado de direito, saibam que um bom barómetro do mesmo é o processo penal…