Todo o ser humano deveria de viver em condições dignas de forma a poder sentir-se verdadeiramente integrado e participante na vida social.
Mas o que se tem constatado, é que estamos confrontados com um novo paradigma, fruto das transformações estruturais da sociedade, mais concretamente em termos políticos, económicos e sociais, onde é necessário um conjunto de sinergias eficazes para dar resposta aos riscos sociais que vão surgindo.
Tenho por certo que esta realidade se agudizou, nos dois últimos anos, com uma pandemia à escala global, e mais recentemente, com uma guerra no centro da Europa, com consequências que já se começam a fazer sentir, quer em termos do abastecimento energético, quer em termos alimentares.
Este mesmo cenário lança indiretamente desafios à intervenção social, subsistindo a necessidade de apoiar os indivíduos, com consequência não só de fatores que já se têm manifestado ao longo de décadas, como é o caso do desemprego, da pobreza e exclusão social. Mas também associado, cada vez mais, ao surgimento de novas problemáticas sociais, de que é exemplo a emigração jovem, o desemprego de longa duração e desemprego jovem, resultado das mutações ocorridas ao nível do mercado de trabalho, onde o pleno emprego deu origem a ciclos cada vez maiores de emprego/ desemprego, sendo a precariedade laboral um fenómeno crescente desde a crise económica de 2008.
Esta conjuntura despoletou ainda uma outra problemática, a do aumento de trabalhadores pobres, ou seja, indivíduos que mesmo trabalhando passam por dificuldades, não se encontrando verdadeiramente integrados na sociedade (11,2% em 2021).
Todas estas alterações são o reflexo do que se verifica na Europa do Sul, estando em convergência quatro fatores: precariedade, taxa de desemprego altíssima, salários muito baixos e retorno ao mercado de trabalho cada vez mais tarde.
A juntar a esta evidência, a pandemia redundou em perdas imediatas do produto interno bruto (PIB) sem paralelo histórico, cerca de 150 mil empregos destruídos logo do primeiro para o segundo trimestre de 2020, perto de 1,5 milhões de pessoas em regime de layoff e cerca de um quarto da força de trabalho por conta de outrem com salários apoiados pelas medidas de proteção do emprego implementadas pelo governo (Fonte: INE; FFMS).
Esta reflexão inicial, vem acompanhar o prepósito deste artigo, centrando nesta parte final atenções às cantinas sociais.
Tive oportunidade, de em 2017, elaborar um estudo em torno do Programa de Emergência Social (PES) (2011-2014), a implementar ao nível nacional e contemplando, na área prioritária de apoio às famílias, o Programa de Emergência Alimentar (PEA) cuja materialização se fez sob a forma de fornecimento de refeições já confecionadas numa “rede solidária de cantinas sociais”.
Na altura o governo, considerava-o, como um caso de inovação social. Questionei-me desde logo…será mesmo assim?
Perante os resultados obtidos com o estudo, ficou bem patente o facto de que mesmo, as cantinas sociais possibilitem aos seus beneficiários o acesso a uma refeição, foi possível concluir que este modelo de fornecimento (take-way), não contribui para a sua integração social, não podendo por isso ser considerado de inovação social. E isto porque, qualquer que ela seja, tem de ter na sua gênese a capacitação dos indivíduos, no fundo uma mudança positiva na sua vida…o que não acontece com esta medida.
Se me permitem, ainda duas notas muito breves:
1ª nota) Os indivíduos que recorrem a este apoio social são pessoas que, na sua grande maioria, nunca tinham vivenciado situações de pobreza, nem tinham necessitado de ajuda alimentar. Falamos de uma nova forma de encarar e olhar a pobreza.
2ª nota) Foi possível notar no estudo, que a situação de privação material severa destes indivíduos, coloca restrições às suas opções de vida e induz sentimentos de solidão e de inferioridade perante os outros, ainda que apenas metade dos indivíduos analisados, adotam estratégias para deixar de frequentar a cantina social. Uma interrogação pessoal, para reflexão; culpa deles, ou culpa da inércia do sistema?
Estou quase a terminar, mas acrescentar ainda, é urgente pensar numa estratégia conjunta, que rompa com o assistencialismo que nos últimos anos tem caraterizado esta medida. Sempre defendi e continuarei a fazê-lo, a intervenção social, só tem um resultado real, se existir uma congregação de esforços coletivos, no sentido da capacitação dos indivíduos.
Passaram-se precisamente 11 anos, após a criação das cantinas sociais, continuando diariamente a distribuir refeições. Por isso termino com uma nota e um desafio futuro, seria importante, e porque os tempos assim o são … de um certo modo controversos… perceber até que ponto, esta situação pandémica agravou e acentuou a ida destas pessoas às cantinas sociais. Até porque, as estatísticas disponíveis no Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, mostram que o primeiro ano de pandemia foi caracterizado por um aumento dos índices de desigualdade e de risco de pobreza, invertendo uma trajetória de melhoria desde 2015.
Termino com um pensamento de Martin Luther King: “a verdadeira compaixão é mais atirar uma moeda a um pedinte”.
É um dever cívico, não unicamente atirar moedas, mas termos a capacidade de refletir sobre as causas sociais, no fundo… alterar o que pode ser melhorado.