3 de Dezembro de 2024. Miguel Pinto Luz, ministro das infraestruturas à data, comprometia-se assim na estação da Guarda: “temos também o compromisso, dado por mim, pelo senhor primeiro ministro, pelo governo e pela IP que no primeiro trimestre do próximo ano, teremos as obras concluídas dos restantes troços” da Linha da Beira Alta. Reforçou: “é para se cumprir e a nossa palavra aqui é mesmo para ser cumprida”. Respondendo à pergunta da garantia de não haver mais nenhum atraso “a partir de agora”, o ministro frisou: “O nosso compromisso, primeiro trimestre do próximo ano, a obra estará concluída e é isso que é o nosso compromisso e daqui a 4 meses ou 3 meses, estaremos cá para averiguar… e para esse escrutínio saudável em democracia”.
3 meses já foram. No dia de Carnaval, surge um novo desenvolvimento deste desfile burlesco: A reabertura da integral Beira Alta voltou a ser adiada, pela quinta vez. Mais 4 meses para vistorias e certificados de conformidade. Mas, segundo o Público, continuarão a existir obras na linha para lá de Março.
Pinto Luz é assim o quarto ministro da tutela a iludir a região. Falta saber se também foi ou não iludido pela Infraestruturas de Portugal. Uma vez que estará com a porta de saída entreaberta (saberemos amanhã), antes de poder assumir a responsabilidade do compromisso falhado, ou tomar os devidos actos para que não volte a ser iludido e sendo cada vez menos provável vir ao terreno “averiguar” antes dos 4 meses (a menos que venha experimentar a suposta iminente reabertura de mais 39 km entre Celorico da Beira e Mangualde), vamos lá então fazer o escrutínio saudável, senhor ministro?
O convite estende-se também aos ex ministros da tutela que tiveram nas suas mãos as intervenções na Linha da Beira Alta e que já se arrastam há mais de 7 anos: Pedro Marques, Pedro Nuno Santos e João Galamba.
Começamos por escrutinar a obra em si do Corredor Internacional Norte
Apresentada já no distante 2018, prometia comboios de 750 metros, potenciar a ferrovia nas acessibilidade aos portos nacionais, desenvolvimento de plataformas logísticas ao longo do corredor e a instalação do sistema de segurança europeu ECTS nível 2.
Despachamos já este último, por ser o mais rápido: Nenhum dos troços actualmente em funcionamento tem esse sistema instalado, tendo o Guarda – Celorico reaberto com o mesmo sistema que tem desde os anos 90 (o obsoleto CONVEL), nem existem perspectivas que cenário se reverta a tempo da reabertura total. Afinal, Decorrerão mais obras para lá de Março e pode mesmo haver condicionamentos na circulação quando (e se?) a instalação acontecer, já depois da reabertura.
Passamos agora ao prato principal do Ferrovia 2020: As mercadorias. 7 anos de obras com supostas correcções de traçado e aumento de capacidade traduzem-se, afinal, num aproveitamento pouco útil. E quem o diz é “só” o presidente da companhia mais interessada nesta intervenção: A Medway. Carlos Vasconcelos foi cirúrgico numa entrevista ao Dinheiro Vivo:
“Na Beira Alta, para esse comprimento, necessitamos de uma locomotiva interoperável porque não dá para mudar de máquina em Vilar Formoso, por falta de resguardo. Também na Beira Alta, para termos comboios de 750 metros, precisamos de usar duas locomotivas, por conta de uma pendente, que limita o peso. O Estado investiu balúrdios nesta linha e não foi capaz de eliminar essa pendente, que limita consideravelmente a dimensão desses comboios. […] Faz confusão como o Estado investe centenas de milhões de euros numa linha e não resolve uma pendente. Com certeza que não é fácil, que custa dinheiro, mas para quem gasta 600 milhões de euros, não acredito que fizesse disparar muito mais o custo da obra.”
Portanto, logo aqui, o objectivo principal do Ferrovia 2020 está em risco de nunca ser atingido por pequenos pormenores, mas que fazem toda a diferença. A Medway, em Espanha, está à frente da primeira autoestrada ferroviária na Península Ibérica. Entre Valência e Madrid, há camiões que sobem a bordo do comboio, reduzindo uma considerável pegada carbónica. Existem planos para essa autoestrada sobre carris ser estendida ao Entroncamento, via Linha do Leste que não é electrificada. Certamente que numa obra focada no transporte de mercadorias e na redução da pegada carbónica como o Corredor Internacional Norte a IP teria a sensibilidade para acautelar uma potencial autoestrada ferroviária à parada de pesados da A25, certo? Nada mais errado. Não foi considerada a mudança de gabarito, imprescindível para a criação de uma autoestrada ferroviária que unisse os portos do Norte de Portugal a Vitoria no País Basco, tendo o homólogo espanhol da IP, o ADIF, reduzido a sua ambição ao Puerto Seco de Salamanca (apesar de ter feito o trabalho de adaptação até à fronteira em Fuentes de Oñoro).
Por falar em Porto Seco… que tal escrutinar a obra física do Porto Seco da Guarda, senhor ministro?
Pois… Não há muito para escrutinar, não é? 3 meses depois de querer acelerar, o local do “terminalzito” (e da a única plataforma logística “nova” ao longo do corredor da Beira Alta) continua a servir para as micro colónias de fauna e flora, enquanto o município da Guarda lança uma requalificação que valorizará uma das portas de entrada da cidade. Ou, sendo mais directos, o local do terminal serve neste momento para a criação de ervas daninhas e serão reabilitadas duas ruas.
Vejamos como está Salamanca… 2 linhas para recepção de comboios? 2 vias para contentores? Uma para materiais a granel (cereais)? Outra para manobrar comboios com 750 metros? Isto tudo dentro do terminal?! Não admira como o Porto Seco da Guarda seja um “terminalzito” de bairro perante esta monstruosidade de mover cargas, cuja primeira fase ainda não está acabada e já estão a pensar na segunda.
4 anos após a aprovação do estatuto, o Porto Seco da Guarda parece cada vez mais prostrado ao seu estatuto legal, felizmente já em uso. Não surpreende que a sua maior impulsionadora tenha, por agora, ido procurar ambições para outras serras. É uma Pena quando se perdem lutadores contra comodistas, burocratas e inertes.
Com o fim das portagens na A25 e Salamanca a mostrar todo o seu esplendor, recupero mais uma afirmação de Carlos Vasconcelos: “Entre um comboio que custa 100 e um camião que custa 90, ninguém paga mais para ser mais amigo do ambiente”.
Já vimos que no foco principal (as mercadorias) a intervenção pesada na Linha da Beira Alta não aparenta alcançar as ambições de tirar vários camiões da estrada ou reduzir substancialmente a pegada carbónica. Não por falta de vontade de quem as transporta.
Juro que, um dia, gostaria de fazer um texto só com coisas positivas sobre o futuro das pessoas no Futuro da Guarda…
Passemos agora para os principais desprezados desta intervenção: os passageiros e a população, que em tempo de viagem, vão recuperar o que havia no início do século XXI. Engane-se que vão demorar menos tempo. Vai ser quase o mesmo que demoravam antes da linha se degradar.
Com uma reabertura a conta-gotas, onde o único beneficiado é o transporte regional de passageiros, era de se esperar uma estratégia, ainda que inicial, de incentivo ao regresso dos passageiros, para além do passe a 20 euros. Mas, nem isso: retomou-se a parca oferta entre a Guarda e Vilar Formoso e para não se passar a vergonha de ter um troço novo sem uso, pôs-se uma automotora a completar a piscina até Celorico da Beira. E antes que houvesse outra aldeia maluca a querer rentabilizar o comboio, o renovado apeadeiro do Baraçal, ficou fora dessas duas incursões diárias para cada lado. O esforço para articular com a oferta da Linha da Beira Baixa também foi mínimo (inexistente?), dado que os tempos de transbordo da Guarda (quando possível), podem ir de meia até para lá de 1 hora, para quem vem de Vilar e quer fazer o resto da viagem de comboio, ou para quem é oriundo de / quer rumar para o lado de Celorico. A reabertura do troço Celorico – Mangualde será outra oportunidade a não desperdiçar e outro momento de escrutínio, um que o senhor ministro pode (ou não) fazer, se quiser, mesmo estando (ou não) em gestão. Mas a julgar pela falta de anúncios, já espero mais do mesmo, repondo mais alguns serviços que já existiam. Isto, a julgar pela falta de novidades e pelas recentes notícias que só agora a CP contratou estudos de procura para as Beiras, presumivelmente ignorando o suposto trabalho de mobilidade que dizem estar a fazer na Beira Baixa e ponto mesmo em causa anúncios feitos há 4 anos quando reabriu o troço Covilhã – Guarda. Sobre isso, falaremos para o mês que vem.
Vamos agora escrutinar as plataformas
Seguindo a tendência de outras obras do Ferrovia 2020, com resultados desastrosos para a operação, esta remodelação encurtou em 1218 metros o comprimento das plataformas das estações na Linha da Beira Alta. Dirão os mais ingénuos que se melhorou a acessibilidade… mas não o conforto, visto que alguns abrigos que protegiam minimamente da chuva foram substituídos por estruturas desenhadas por alguém cuja maior deslocação ao Interior deve ter sido ao Mestre Maco de Paio Pires. Um bolo queimado revestido com chantilly também aparenta ser bom até o provar. Incapazes de proteger do frio, da chuva tocada e do vento gélido, são tudo menos um convite a utilizar o comboio.
Não acabo este escrutínio às instalações sem salientar que a estação da Cerdeira, cujo serviço de passageiros regressou em Novembro, não tinha, a 1 de Janeiro de 2025, qualquer serviço sonoro de informação ao público, algo que antes tinha em ambas plataformas. Com alguns cabos pendurados, acredito que seja uma situação temporária, mas que será acompanhada.
De downgrades, nas comodidades dos passageiros, estão as obras do Ferrovia 2020 cheias.
Escrutinados os pormenores, vamos agora escrutinar o processo desastroso que é o encerramento da Linha da Beira Alta
E em parte, a impunidade do gestor das infraestruturas que sistematicamente lança calendários que não consegue cumprir, já desde o tempo de Pedro Marques.
Não contando o que está para trás de Abril de 2022 (e já é alguma coisa), a Beira Alta encerrou a 19 de Abril, com Pedro Nuno Santos na tutela, supostamente por 9 meses, mesmo cientes da conjectura mundial (Guerra da Ucrânia, o pós COVID-19 e tudo o que ambos trouxeram ou ameçavam trazer) e com um optimismo de “uma maior eficiência nas empreitadas com importantes ganhos no encurtamento dos prazos de execução” afirmava na altura a IP. Esses 9 meses logo passaram a 19. Quem diria que a conjectura mundial iria atacar uma obra com grandes dimensões… Nem o Capitão Óbvio, pelos vistos. Adicionalmente, justificou-se que era necessário reconstruir o viaduto sobre o IP3 em Santa Comba Dão, antecipando-se à ampliação do mesmo. Ah afinal agora já se pode fazer alterações ao planeamento e à empreitada em curso? Já agora, o antigo viaduto estava preparado para duas vias. O novo só, uma. O 14 de Janeiro converteu-se em 12 de Novembro de 2023, prazo esse que segundo João Galamba, agora na tutela, “não seria violado”. Violação estava, sob a forma de segundo adiamento, com a reabertura chutada para Junho de 2024, justificando outra vez com a maldita conjectura mundial que não foi aparentemente acautelada nem mitigada, até agora. Acautelado não foi também o planeamento da demolição do túnel de Mourilhe e os 19 meses que passaram para 26, meteram água com o terceiro adiamento, afundando o encerramento para 32 meses, com reabertura até ao final de 2024… parcialmente.
Com a garantia da reabertura do troço Celorico – Guarda, chegamos ao quarto adiamento, incrementando os meses de encerramento para 36, o tal compromisso assumido por Miguel Pinto Luz. Com o quinto e mais recente adiamento, a reabertura integral parece que só acontecerá com 31 meses de atraso, pondo fim (finalmente?) a um encerramento de 40 meses. 3 anos e 4 meses. Mais meio ano de derrapagem, e demora-se o mesmo tempo a renovar 200 km que os antepassados demoraram a construir do zero os 252 km desde a Figueira da Foz até Vilar Formoso.
Uma vez é a Guerra da Ucrânia, outra é a pandemia, outra é o cobre da catenária que foi roubado, outra um túnel demolido que meteu água, outra a unha do carril que encravou… enfim desculpas atrás de desculpas, para um cenário comum: Relembro que o troço Covilhã – Guarda da Linha da Beira Baixa demorou o dobro do planeado, já levava um ano de atraso antes do eclodir da pandemia COVID-19 e nessa altura a única guerra que existia era nas estrelas. Não admira que, finalmente (!!!), a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes defenda uma auditoria aos investimentos do Ferrovia 2020, contrapondo que “durante a fase de planeamento […] os riscos, condicionantes e incertezas na execução dos empreendimentos não foram adequadamente ponderados, assim como convenientemente estudadas as estratégias de mitigação pertinentes, originando calendários e programações inadequadamente optimistas, que se têm vindo a constatar irrealistas e irrealizáveis”, segundo a notícia do Dinheiro Vivo. Essa auditoria terá de ser isenta, exemplar e com consequências rígidas. E de preferência, sem o principal visado envolvido na sua concepção, visto que lobo manso a guardar o rebanho não agoira bom resultado.
Senhor ministro, provavelmente nunca vai ler este texto, ou quando ler, já passou a pasta à próxima “vítima”, mas deixe-me dizer que há poucos dias ouvi uma classe profissional dizer que “a responsabilidade nunca é de um político”. Nota-se. Vamos a caminho do quarto governo com a Beira Alta fechada. Zero responsabilidades, zero consequências. Zero empatia para com a região que, pelos vistos, só serve para vir tirar umas fotos de campanha, comer um queijinho e atirar areia para cima dos olhos.
A administração da IP findou o seu mandato no final do ano passado. Uma solução de continuidade é ser complacente com a espiral de decadência a que o caminho de ferro português tem sido submetido, apesar dos constantes “estamos a apostar na ferrovia” que se traduzem em poucos resultados práticos a pensar no futuro.
A região continua à espera das medidas para recuperar da queda brutal de passageiros. Os operadores de mercadorias não vivem permanentemente de indemnizações, impedidos de ver crescer o seu negócio, enquanto os seus concorrentes de pneus recebem benesses atrás de benesses. E poupar uns “trocos” para comprometer o futuro a longo prazo é contra-producente e leva a textos maçadores como este, visto que o poder local só acorda de vez em quando para dar sinal de vida, em vez de reivindicar com garra.
A Igreja de Santa Engrácia pode respirar de alívio: Deve faltar pouco para ser mais adequado usar “obras da Beira Alta” (ou “obras à IP”) para comparar algo que não tem fim, em vez de “obras de Santa Engrácia”.