A Guarda e(terna)mente

Somos invariavelmente um produto inacabado do meio onde nascemos e crescemos. Assim, não será exagerado afirmar que o local onde, pela primeira vez, experienciamos o mundo em nosso redor, definirá para sempre uma parte não negligenciável de nós. E quis o destino afortunado que as vivências da minha infância e adolescência tivessem como sustentáculo a cidade mais alta, mais fria e, modéstia à parte, talvez mais bonita deste país.

A cidade da Guarda que me habituou desde cedo a invernos rigorosos. Recordo com saudade o ritual sagrado de escutar atentamente o programa da manhã da rádio local em dias de neve, que tantas vezes deu azo a gritos de alegria e regozijo, em virtude do imposto cancelamento das aulas pela adversidade meteorológica. Vêm-me igualmente à memória dias gélidos, em que a geada enregelava a urbe e fazia lembrar cristais preciosos, qual presságio do valor simbólico, mas simultaneamente incalculável, que a Guarda representa na minha vida.   

Recordo de igual modo as conquistas que a cidade foi celebrando ao longo das três últimas décadas: os baloiços vanguardistas do Parque Urbano do Rio Diz; os assentos aconchegantes e a acústica diferenciada do Teatro Municipal; a tranquilidade e o ambiente acolhedor da Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço ou, mais recentemente, a proximidade com a natureza proporcionada pelos Passadiços do Mondego. De menção não menos relevante há a considerar igualmente os troços de autoestrada que servem a região, a intervenção estrutural na ferrovia ou a vindoura implementação do Porto Seco.

Orgulhosamente formado nas escolas públicas da Guarda, que parecem ainda representar uma exceção ao preocupante panorama da educação pública nacional, foi justamente nestes estabelecimentos de ensino que pela primeira vez fui instigado a questionar a realidade da minha cidade natal. Foi através da escola que fui contactando com temáticas tão diversas e desafiantes como a interioridade, a inversão da pirâmide demográfica, as desigualdades de desenvolvimento económico ou a qualidade dos cuidados de saúde prestados.

Citando José Saramago, “É preciso sair da ilha para ver a ilha”. E esse sentimento de contemplação para com a cidade da Guarda, a partir do exterior, ficou definitivamente consumado quando decidi rumar a Lisboa para prosseguir os meus estudos. Confrontado com a azáfama da capital, onde as horas de ponta fazem por vezes desejar a relativa pacatez do interior, apercebi-me do contexto de um país que corre a duas velocidades. De um país que, nas múltiplas questões estruturais, parece ter-se esquecido dos territórios geograficamente mais distantes do mar.

Prontamente me dei conta de que a oferta cultural da cidade onde nasci fica um pouco aquém das expetativas de um adolescente ou jovem adulto que pretenda radicar-se na Guarda. A biblioteca, pese embora a reconhecida importância formativa, encerra às sete horas da tarde, não existindo qualquer local que possibilite o estudo depois desse horário; algo verdadeiramente impensável numa capital de distrito com um estabelecimento de ensino superior.

Findo o percurso académico, um recém graduado conta pelos dedos das mãos as empresas nas quais pode iniciar a sua atividade laboral na Guarda. Seja pelo desinvestimento no interior do país dos sucessivos governos centrais, seja pela falta de atratividade para os grandes grupos empresariais, o resultado é uma evasão permanente dos jovens e uma incapacidade de reter os talentos que os guardenses tanto se orgulham de formar.

Lisonjeado por ter tido a possibilidade de representar uma exceção à regra, e ter iniciado a minha atividade profissional na Unidade Local de Saúde da Guarda, apercebi-me igualmente de outros cenários menos positivos que caracterizam a região. Por um lado, a pobreza e a solidão, sobretudo dos mais velhos, cada vez mais esquecidos e isolados da metrópole, pese embora todo o desenvolvimento da ferrovia e das autoestradas que previamente mencionei; por outro lado, a constante degradação dos cuidados de saúde locais. Testemunhei, ao longo da minha permanência no Hospital de Sousa Martins, uma qualidade inquestionável dos profissionais de saúde, uma entrega e dedicação tantas vezes sobre-humana, como única forma de dar resposta aos problemas estruturais do sistema de saúde. Não obstante, os constrangimentos a nível das urgências, a fuga dos médicos internos após o término do período de formação geral ou específica, ou a ausência e inoperância de alguns serviços clínicos indispensáveis ao bom funcionamento de um hospital, são alguns dos problemas que, uma vez mais, contribuem para engrandecer a iniquidade que separa a Guarda de outras localidades deste país.

Talvez o propalado aquecimento global vá tornando cada vez mais rara a queda dos crassos fiapos de neve que marcaram gerações. É provável que os valores que o termómetro marca se aproximem cada vez mais dos registados noutras regiões de condições mais amenas. Ainda assim, a estação que parece querer continuar a imperar é o inverno demográfico e geográfico que ao longo das últimas décadas se faz sentir na cidade mais alta do país. Cabe, seguramente, ao executivo nacional e local tomar medidas, tendo em vista a reversão deste cenário iminentemente desolador. Contudo, cabe-nos também a nós, enquanto jovens, a promoção de uma cidade distinta, de uma gastronomia ímpar e de uma beleza natural inigualável. Por ter sido o nosso berço, no amago do granito, cabe-nos engrandecer esta cidade histórica, que nos marcará de um modo indelével e nos acompanhará e(terna)mente.