Este mês tornou-se pública a mais recente pretensão do “partido” Chega: um referendo à imigração, uma vez a alegada crise instalada no país. Felizmente, e a bem da lucidez e da frugalidade, escusou-se o Presidente da República de tal ato desabrido, recusando qualquer audiência marcada para o efeito.
Não chegando a concretizar-se é certo, não a considero, ainda assim, completamente despicienda. Por um lado, revela uma vez mais a puerilidade e desfaçatez já conhecidas do partido; E por outro, surge como mote de um pensamento que me dei conta, que de seguida partilharei.
“A origem da Tragédia” – como diria Nietzche – começa, em termos causais, com o que na esteira dos sociólogos se denomina por fenómeno da personalização. O fenómeno da personalização é nada mais que a emergência da individualidade que opera em cada sujeito. Seja como for, decerto que todos estamos familiarizados com expressões como “o importante é sermos felizes”, “sentirmo-nos realizados” ou “sermos nós próprios”. Têm, contudo, um revés. Se por um lado transmitem a bonita mensagem de que como cada ser humano é único, tem o indivíduo direito de ser absolutamente ele próprio, fruindo a vida ao máximo e como bem lhe aprouvera, levadas ao extremo resultam numa espécie de hipertrofia do Eu, com todos os malefícios que daí advêm.
Serão, por isso, as palavras de Pascoal, ao afirmar que “A sucessão dos homens no curso de tantos séculos deve ser considerada como um mesmo homem que subsiste sempre e aprende continuamente”, concatenáveis com o atual estado da coletividade, cada vez mais erodida e consumida pela atenção às esferas pessoais?
Creio que não; aliás, sejamos francos: mercê de cada um estar preocupado com a sua sublime individualidade, paira um total absentismo em relação às questões decisivas da vida coletiva, refluindo-se antes as energias no sentido do Eu.
Qual orçamento de Estado? Candidata a comissária da UE? privatização da TAP? Qual abertura à imigração?
Assiste-se, pois, a uma clara deserção da vida política. Pior: a uma anemia da empatia. Até os militantes do CDS, cuja ideologia é a doutrina tradicional da igreja, fortemente marcada pela solidariedade humana, concluem pela existência de uma crise da imigração.
Lá que se referissem às condições indignas em que os imigrantes habitam ou às precárias situações laborais em que se encontram… Mas não. É mesmo pela substituição populacional e da cultura portuguesa, pelo “roubo” dos postos de trabalho, e eventualmente também por nos comerem os animais de estimação. Enfim, um conjunto alargado de caturrices.
De uma vez por todas: a imigração é hoje um fenómeno indispensável face aos desafios que o país enfrenta. Excluindo as razões de ordem emocional, tal como a solidariedade humana, que acabam por dizer respeito ao carácter de cada um, a imigração dá resposta desde logo ao declínio demográfico, rejuvenescendo a nossa população ativa, tão importante no financiamento dos encargos sociais do Estado tais como o pagamento de pensões aos nossos idosos. Note-se que esta visão é secundada desde logo no saldo líquido positivo de 1500 milhões de euros de contribuições dos imigrantes para a Segurança Social. Contribuíram com 1800 milhões, receberam de prestações do Estado 300 milhões.
Julgo até que se assiste a uma política cada vez mais exaurida, incapaz de inflamar multidões.
Já não há nenhuma visão cosmopolita ou regionalista. O que há são visões individualistas. Aliás, em Portugal passou antes a haver 10 milhões de micro-ideologias diferentes, 10 milhões de micro-interesses, o que faz prever o vencedor de cada ato eleitoral: ganha aquele que mais benefícios apresentar ao eleitor individualmente considerado. Porque no final do dia o que conta são os interesses miniaturais de cada um.
Mas como nos ensina a experiência comum, quem por tudo tem interesse, verdadeiramente por nada se interessa, e acabamos assim perfidamente governados pelo vazio.
“E eu pergunto…” (Quase no mesmo tom que Odete Ferreira usou quando, citando Garrett, inquiriu na AR os economistas, políticos e moralistas sobre o preço de um rico) quantos são aqueles que antes de votar numas legislativas, por exemplo, têm o desplante de indagar o que cada programa propõe em relação aos problemas das minorias invisíveis (aquelas que não têm o privilégio de serem abrangidas pela cultura woke – refiro-me às pessoas com deficiência, pessoas em situação de sem abrigo, pessoas privadas da sua liberdade em razão de penas ou medidas de segurança, crianças e jovens em situações débeis, imigrantes, et cetera).
É minha conclusão, portanto, que o átomo individual se emancipou de tal ordem, que proliferou as barreiras da sociedade enquanto um todo, desvaneceu-a, fazendo com que não tenha qualquer imagem de si própria, ou do que pretende ser.
Afinal, o que pretendemos enquanto coletividade? – se é que ainda existe esse vocábulo…