Vivemos tempos tenebrosos. Se é verdade que a área mais afetada tem sido Lisboa, parece-me evidente que o mal-estar se estende por todo o país.
Certamente, o que aconteceu na semana passada suscitará grandes debates parlamentares e profundas reflexões por parte dos nossos líderes políticos. Afinal, o resultado é, em parte, fruto da inércia constante do poder político perante uma série de problemas sociais.
Desde já, cumpre lamentar uma morte e um ferido grave – este último, muito provavelmente com marcas indeléveis -, que merecem a nossa solidariedade.
Em segundo lugar, muito se ouviu sobre as circunstâncias fácticas em que ocorreu a morte de Odair Moniz. É prematuro, no entanto, sobre elas ajuizar, porque, primeiro, não foram ainda cabalmente apuradas e, segundo, só aos tribunais caberá a sua apreciação, no exercício do poder jurisdicional.
Porém, creio possível, ainda assim, analisar o sucedido abstraindo-nos dessas considerações. Isto porque, apesar da revolta popular ter sido espoletada pela morte de Odair, não se esgotou tão-só nela. Isto é, não podemos perder de vista o longo contexto histórico-social daqueles que agora protestam. Trata-se de vidas sistematicamente ostracizadas, marginalizadas, atemorizadas, lesadas pelo racismo – que manifestamente existe -, preconceito e discriminação. Numa palavra, trata-se de exclusão social.
Isto porque, verdadeiramente, ainda vivemos tempos em que a família de onde advimos, o berço onde nascemos, o bairro onde moramos, são condicionalismos de um percurso de vida pleno, redundando até em ciclos de pobreza. Portanto, mesmo que a morte não houvesse ocorrido, o aqui exposto justificaria, por si só, uma, senão várias, revoltas.
Contudo, o mesmo não é dizer que se façam sem mais. Como já aqui tive a oportunidade de afirmar, nenhum direito é absoluto. E também não o é o direito de manifestação – daí necessária a autorização prévia da câmara municipal competente, como forma a assegurar a ordem e segurança dos manifestantes e demais cidadãos. Por sua vez, tumultos e figuras afins, não se compadecendo com o supra direito, não devem ter espaço num Estado de Direito.
Mas, quanto a mim, o que verdadeiramente dominou a semana não foi apenas a morte a lamentar de Adair, na sequência de uma abordagem policial em circunstâncias duvidosas (e isso é manifesto, daí a constituição de arguido – que também não significa a sua culpabilidade ou condenação). E também não foi só a reação popular dos que sistematicamente são discriminados por |) cognições desafortunadas, II) indivíduos de mau carácter,) ou III) aqueles que cumulam das duas.
O que foi verdadeiramente catastrófico, quanto a mim, foram as declarações fétidas dos membros de um partido devidamente legalizado em Portugal – cujo perfil de militância, curiosamente, coincide com a tríplice referida.
E, a esse respeito, uma vez mais: é certo que só aos tribunais caberá a apreciação sub judice. Mas a boa cidadania – e daí a importância de aulas de cidadania… – impõe que ajamos. O respeito pelo outro, a empatia, a compaixão, a solidariedade, enfim, todos os estes valores que dela emergem tornam-nos sensíveis a tudo isto. Vinculam-nos, aliás, a censurar severamente os seus emissores, exortar os agentes políticos à inclusão social de todos os cidadãos e, acima de tudo, não deixar cair no esquecimento o que foi dito, sobretudo em tempos eleitorais.
Avulta também recordar a lenda alemã do doutor Fausto, que julgo enquadrar-se perfeitamente. Na versão de Johann Wolfgang Van Goeth,, Mefistófeles, mensageiro do diabo, encarrega-se sistematicamente de sussurrar a Fausto, procurando sempre que este último transgredisse e sacrificasse a sua integridade, em troca de felicidade. Terá, então, Mefistófeles sussurrado ao Deputado que em canal aberto proferiu aquele conjunto de caturrices? Creio que sim, afinal de contas é o partido de um líder só. Seja como for, o certo é que o próprio Mefistófeles pecou por excesso, ao sugerir a distinção do agora constituído arguido.
Espero, sinceramente, que esta semana tenha servido para desmascarar André ventura, e os seus discípulos, que a favor de votos tudo fazem e dizem.
E agora algo que me pareceu ignorado: André ventura sempre se arrogou da qualidade de católico, dizendo até – pasme-se o verdadeiro crente – ter sentido um chamamento divino para então se impulsionar na política.
É caso para dizer, lembrando um episódio bíblico, que o então anjo André, decidido a insurgir-se, foi esta semana desmascarado e, por conseguinte, expulso do Reino do Céus, tendo então caído à terra. Parece que o populismo e a demagogia queimaram-lhe as asas.
Mas enfim, só a vontade popular para o confirmar.
Afinal, um cristão não incita à violência, não felicita a morte, e tampouco fomenta desígnios homicidas.
Desta semana restam assim transgredidos valores católicos, sociais, humanitários e quiçá legais.
Alias, o Direito Penal em Portugal inspira-se profundamente nesse valor insofismavelmente católico de perseverança, de não desistência de ninguém – dai a pena máxima de 25 anos, fundamentada numa lógica de ressocialização do agente.
E já agora, é bem não olvidar também que um dos pilares do Estado de Direito é, desde logo, o primado da Lei. E essa – neste caso a Penal – não distingue entre políticos e não políticos.