Dia da libertação ou da ruína? O impacto global (e local) das tarifas

A economia foi atacada na sua coluna vertebral.
E o mundo mudou esta semana — Trump também.

A imposição de tarifas alfandegárias representa uma das formas mais perigosas da guerra moderna. Sem tanques nem arsenais, pode causar danos profundos e duradouros à humanidade.
Não é um cliché: a insistência nas tarifas vai mudar a vida de todos nós.
O impacto no bem-estar das pessoas é real. Devastador.
E logo com epicentro no país e no modelo económico mais próspero do planeta.

A culpa não é da heterodoxia económica.
Nada tem a ver com as virtudes ou defeitos do modelo.
É um género de nacionalismo económico que divide em vez de cooperar.
É uma experiência radical em marcha por Trump, que transforma todas as economias em cobaias e pode revolucionar o sistema económico, lançando-o numa recessão.

A bênção da economia livre é a criação de riqueza para que os políticos possam exercer políticas que melhorem a qualidade de vida das pessoas.
Essa dicotomia foi agora abalada.
A economia foi atacada como nunca antes. E foi-o na sua substância: na livre iniciativa da economia de mercado.

É inédito.
Não pelas tarifas alfandegárias em si, mas pela sua aplicação em plena economia global.
Habituámo-nos a considerar que a inflação ou a deflação são as piores variáveis macroeconómicas.
Não são.
Pior é o protecionismo. Pior é o isolacionismo e o totalitarismo.

Fixar preços de venda por decreto é negar a economia. A história ensinou-nos quais os modelos económicos que falharam por essa via — como o colapso das economias planificadas.
Seria uma catástrofe planetária se o modelo económico também falhasse nos Estados Unidos, como já falhou noutras latitudes, mesmo que por diferentes motivações políticas.

O que está a acontecer?

Impor tarifas parece, à primeira vista, um ato patriótico.
Parece uma equação simples: se não se importam bens e serviços de outros países, então esses bens podem ser produzidos internamente. A ideia é que, assim, haverá mais empresas e mais empregos.
Mas isto é factualmente errado.
Pode até parecer funcionar no curto prazo, mas depois só produz empobrecimento.

Não há nada mais devastador do que acabar com a concorrência em nome de um falso protecionismo estatal. O maior “handicap” das empresas é entrarem numa zona de conforto.
É abdicarem de inovar, de melhorar continuamente, de simplificar processos, de serem criativas, de fazer reengenharia, de se especializarem, de atingir a excelência e a qualidade.
Cria-se a ideia de que não é preciso fazer melhor do que os outros, pois o Estado protege.
Não é preciso prestar contas. Tudo e todos estão protegidos.
E quando se protege todos ao mesmo tempo, o nivelamento é sempre por baixo.

O resultado? Produtos menos atrativos, mais caros e de menor qualidade.
Mas há mais.
As tarifas são retaliadas por outros países, reduzindo ainda mais a concorrência. As empresas, além de protegidas, passam a estar banidas dos mercados externos.

Esta é a anatomia da destruição de empresas e do valor que estas criam.
A falta de competitividade gera aumento de custos. Os custos elevados resultam em preços mais altos, que o consumidor terá de pagar.
É o consumidor que suporta a ineficiência das empresas e a má gestão — que também é protegida.

Ou seja: com menor poder de compra, o consumidor deixa de consumir.
E quando isso acontece, o efeito bumerangue atinge as empresas.
Sem mercado, começam a fechar. E as pessoas perdem os empregos.
A economia encolhe.
E já sabemos como termina: mais défice e dívida pública, mais endividamento das famílias, e um retrocesso no bem-estar geral — caminho direto para o empobrecimento.

Porque perde o consumidor americano?

  • Na BOLSA: Quase todos os americanos têm poupanças aplicadas nos mercados (mais de 60%). Os fundos de pensões têm uma exposição mínima de 20%. Uma correção bolsista reflete-se nas reformas.
  • No PODER DE COMPRA: Os bens vão tornar-se mais caros. Prevê-se que os iPhones passem a custar mais de 3 mil dólares. Muitos são produzidos na Ásia, outros nos EUA mas com componentes importados, como os semicondutores de Taiwan.
  • Nos AUTOMÓVEIS: O aumento poderá superar os 10 mil dólares! Mesmo os fabricados nos EUA, pois os componentes são importados. A Amazon vende nos EUA, mas compra na China. A Nike idem.
  • Na QUALIDADE: As tarifas vão limitar o acesso a produtos de excelência fabricados noutras nações.
  • NOS MELHORES EMPREGOS: Os qualificados. As tecnológicas perdem a sua capacidade global de inovação e desenvolvimento. As tarifas promovem a deslocalização de empregos não qualificados para os EUA.
    Exemplo: a indústria têxtil. O Bangladesh será tarifado. Qual a alternativa? Produzir nos EUA? Não me parece que os americanos queiram empregos intensivos e desqualificados. A alternativa? Mais inflação, menos qualidade de vida.

Nos países de origem o impacto é também desastroso — populações mais pobres e mais vulneráveis a conflitos.

Todos perdem.

A fórmula das tarifas

A fórmula das tarifas é um ultraje às virtudes da economia.
A ideia justiceira de que o défice comercial (diferença entre o que se exporta e o que se importa) deve ser anulado com tarifas é um erro crasso.
Uma coisa nada tem a ver com a outra.

É verdade que os Estados Unidos e o Ocidente precisam de reindustrializar as suas economias. Mas esta é a via errada.
Esta fórmula apenas favorece produtos não competitivos e de fraca qualidade, que hoje não entram nos EUA — e que passarão a ter oportunidades, desde que o seu país não tenha défice comercial com os EUA.

É tratar por igual o que é desigual.
Desmotiva os bons e desculpa os maus.
Isto é o antinomianismo da economia.
A ideia de reduzir o défice comercial a dividir por dois não faz sentido — nem um merceeiro aplicaria tal lógica.

Outro problema: isto não é produto a produto. No comércio internacional, todos transacionam bens distintos, com a vantagem de poderem usufruir do que os outros produzem com talento e recursos únicos.

Quando vamos a um restaurante e pagamos a conta, não esperamos uma compensação para equilibrar o orçamento familiar. Um défice comercial não é, por si só, sinal de uma economia frágil.
Bem pelo contrário: a economia americana floresceu nas últimas décadas, apesar do défice externo.

Exemplo: o Botswana exporta diamantes para os EUA e quase nada importa. É um “défice bom”. Os diamantes geram riqueza e ativos seguros de poupança nos EUA. As tarifas apenas farão subir os preços — penalizando o consumidor americano.

Sem falar da insólita taxação de uma ilha onde só vivem pinguins.
Outro facto curioso: as tarifas não abrangem a Rússia, Bielorrússia ou Coreia do Norte…
Como explicar isto a um republicano conservador?
Como explicar a um cidadão comum que são as liberdades individuais e o mérito económico que estão a ser negados?

Para já, temos apenas uma certeza: a economia acaba de ser atacada no seu coração — o mercado livre.

O que se segue?

  • REVERSÃO ou REDUÇÃO das tarifas: O melhor cenário. Pode acontecer esta semana, antes da retaliação da China (anunciada para o dia 10, com tarifas de 34%). Quero acreditar que Trump é um negociador e que esta posição extrema procura apenas ganhos negociais — como no primeiro mandato.
    Mas a escala desta guerra comercial deve deixar-nos perplexos. A metamorfose de Trump justifica a inquietação. No primeiro mandato, tinha conselheiros competentes e credíveis do partido republicano. Hoje está rodeado de fanáticos ideológicos e personalidades narcisistas, fruto do movimento MAGA (Make America Great Again).
    É preocupante. É chocante.
  • RECESSÃO da economia: Irá começar nos EUA e alastrar-se a todas as regiões, se a guerra comercial persistir.
  • ESTAGNAINFLAÇÃO: Vamos ouvir muito esta palavra. Significa inflação alta numa economia estagnada. Preços altos, sem crescimento económico — perda contínua do poder de compra.
  • BOLSAS: As bolsas colapsaram nas duas sessões após os anúncios. Mais dor virá.
    Em dois dias, desapareceram 5,4 triliões de dólares da bolsa — só em Wall Street. Esta variação é superior à riqueza gerada pela Alemanha num ano (!). Nunca visto.
  • DÓLAR: Curiosamente, desvalorizou — o oposto do esperado.
    A lógica protecionista sugeria valorização, pois os outros países tenderiam a desvalorizar as suas moedas. Mas a falta de confiança dos agentes económicos e o receio de recessão inverteram a tendência.

O que fica?

  • Uma crise económica severa — provavelmente a pior de sempre.
  • A desglobalização — agora irreversível. Um murro no estômago das economias em desenvolvimento.
  • O retrocesso das democracias liberais, com ascensão de regimes autocráticos.
  • Um intervalo na prosperidade da humanidade.
  • Um travão à inovação, especialmente das tecnológicas americanas.
  • A propensão a conflitos armados — mais guerras.
    A correlação histórica é clara: a maior guerra da História seguiu-se à maior crise económica — a Grande Depressão de 1929 resultou na Segunda Guerra Mundial.
  • O maior paradoxo político-económico que já presenciei:
    • A economia mais livre do mundo quer mais Estado na economia.
    • A economia mais aberta quer agora isolacionismo.
    • O modelo mais próspero da história quer retroceder económica e civilizacionalmente.

Não há aritmética na economia: quando um ganha, ganham todos; quando um perde, perdem todos — sobretudo os que se autoisolam.

Que soluções?

  • Acordos de cooperação com outras regiões.
    O acordo União Europeia–Mercosul é excelente para a Europa:
    • Redução de tarifas com a América Latina beneficia empresas e consumidores.
    • Para Portugal: maior potencial de exportação (vinho, azeite) e importação de carne de qualidade a preço mais acessível.
  • Parcerias com mercados como China e Índia podem também ser uma oportunidade.

A metamorfose

  • O mundo mudou. Mas Trump também.
    Afinal, havia uma guerra pior e maior.
    Numa economia livre e global, todos são vítimas:
    Americanos, asiáticos, europeus.
    Ricos, pobres. Jovens, idosos.
    Do litoral ao interior.
  • O “Liberation Day” virou “Ruination Day” — título de capa da The Economist. Uma mensagem notável e tremendamente eficaz.
  • Acabo de ver mais de mil protestos populares nos EUA contra as tarifas.
    E o pior está por vir: o impacto dramático no bolso dos cidadãos, assim que as tarifas se tornem realidade.
  • A boa notícia? Esta crise é fácil de resolver — se Trump quiser.
    A não resolução, porém, será transversal e durará gerações.
    Pode ser o maior retrocesso no bem-estar das nossas vidas.