Discretamente, nas sombras das festividades dos 825 anos do foral da “mais alta”, decorreram 2 eventos que, num país verdadeiramente Europeu, não teriam passado despercebidos e muito menos mal cozidos.
Na segunda-feira, 25 de Novembro, chegou à estação da Guarda o primeiro comboio de passageiros de Vilar Formoso desde 19 de Abril de 2022. A orvalhada das 6 e meia da manhã pôs fim a uma interrupção de 952 dias do serviço ferroviário de passageiros da Linha da Beira Alta. Reabriu? Sim e não.
A tutela finalmente decidiu a reposição (sem grandes alterações) dos 2 comboios diários por sentido entre Vilar Formoso e a Guarda e ordenou a sua extensão até Celorico da Beira, o único troço de 38 km concluído das prolongadas obras de manutenção pesada, talvez numa tentativa de conter o embaraço de ter uma via e plataformas prontas há meses sem uso. De fora ficou o renovado apeadeiro do Baraçal, não fosse a gente daquela aldeia ter alguma ideia de rentabilizar um potencial aumento de oferta. Coesão a duas velocidades ou esquecimento? Ambas são válidas, dado que, no próprio dia, o gestor da Infraestrutura deve ter-se esquecido que o troço Celorico – Guarda tinha reaberto à exploração e o comboio ficou quase 1 hora à espera do telegrama (!!!) que o autorizava a seguir pela via além da Avenida de São Miguel.
Perante uma retoma austera e sem aparente ambição para incentivar o regresso dos passageiros aos carris, só quem vive numa realidade paralela é que pode pensar que era só repor algum serviço e os clientes apareciam; não fosse Maria Deolinda Teixeira entrar em Vila Franca das Naves e a primeira subida comercial do vale do Massueime teria sido feita apenas por uma comunicação social à procura dos passageiros que não voltaram com o comboio.
Uma reabertura parcial, sem glória, acompanhada por uma suposta timidez da tutela… durante uma semana. Talvez por impaciência, talvez para fazer prova de vida, eis que uma comitiva de pessoas que mandam nos comboios, mas que dificilmente (muitos) devem andar neles fora destes espectáculos de propaganda, resolveu rebentar com a média diária (global até agora?) de passageiros entre Celorico e a Guarda, fazendo, já neste mês, uma pseudo inauguração com “carruagens renovadas” (que, afinal, são as mesmas que andam pela Beira Alta há 20 anos, sem grandes modificações – seria algum lustre aplicado na hora?) e com a promessa de, no final do primeiro trimestre de 2025, termos a linha totalmente reaberta “e isto é para se cumprir”.
Compromisso Anotado, Decerto: Daqui a “3 ou 4 meses” faremos o devido “escrutínio saudável” se, de facto, valeu a pena estes quase 3 anos de encerramento de manutenção lenta, uma vez que, afinal, vários comboios de 750 metros arriscam-se a ser uma miragem. Uma análise a fazer mais tarde. Até lá, muita água irá correr tanto no Mondego, como em Mourilhe.
Passemos agora para o segundo evento, intitulado “Projecto-Piloto de Mobilidade Integrada da Beira Interior”. Uma boca cheia de palavras de ambição, certo? Sim, novamente numa realidade paralela.
Inicialmente inserido na Conferência Mobilidade Integrada – Eixo da Beira Interior, tinha a sua apresentação marcada para a manhã de 18 de Setembro no Teatro Municipal da Guarda. Com Portugal a arder, foi sensato adiar a apresentação do que aparentava ser uma chama intensa para a mobilidade regional.
A conferência acabaria por ser reformulada e renomeada para “Dia Mundial do Transporte Sustentável”, data assinalada a 26 de Novembro, passando o Eixo da Beira Interior para segundo plano, apesar das poucas diferenças entre os programas. Já não bastava tirar o holofote da região, o evento foi mesmo deslocalizado para fora dela, com o porto de Lisboa a servir de anfitrião da apresentação pública daquele que parecia ser o D. Sebastião da mobilidade da Beira Interior.
Só que tal como o mito do “Sebastianismo”, a apresentação do famoso projecto-piloto era, afinal, uma mão cheia de nada. Convenhamos, as expectativas também não eram muitas: Depois do mediatismo sobre carris que foi a Conferência “Desafios da Mobilidade nos Territórios de Baixa Densidade“, organizada pela Autoridade da Mobilidade e dos Transportes (AMT) entre Lisboa e a Covilhã (os territórios a Norte ficaram de fora), em Outubro de 2023, e onde supostamente tinham sido lançadas as bases para o projecto-piloto, o que se seguiu foi silêncio. Não por falta de interesse da sociedade civil que, mais uma vez, foi posta de lado.
Ainda assim, perante uma distância temporal de quase um ano, um painel intitulado “Apresentação do Projecto-Piloto de Mobilidade Integrada da Beira Interior”, era capaz de deixar uma microscópica esperança ao mais teimoso optimista em estado de negação severo. Vejamos, então, o que trouxe este painel:
Hugo Oliveira, director de regulação da AMT, deu o pontapé de saída com uma introdução a reforçar o cenário dramático conhecido há anos na Beira Interior, onde o transporte público perdeu, em 2 décadas, mais metade da sua relevância, representando apenas 8% dos meios de deslocação utilizados nos 5 concelhos do eixo: Castelo Branco, Fundão, Covilhã, Belmonte e Guarda. O automóvel individual lidera “apenas” com 72%, seguido do meio mais milenar de transporte: andar a pé (19%).
Não livre de lacunas – parece que o concelho de Belmonte não é servido por comboios de passageiros – esta apresentação frisou que o pressuposto do projecto assentaria numa solução inovadora com base em “união de vontades” (entre regulador e poder local) e todo um conjunto de expressões habituais do ecossistema “mobilidade / coesão / ambiente”. Num sorrateiro slide de objectivos é finalmente reconhecida a necessidade de envolver profissionais e cidadãos neste projecto. Como? Não foi claro. Quem conhece melhor a realidade no terreno?
Tirando a enumeração de trabalho nos bastidores, também importante, mas não o suficiente que justificasse, inicialmente, toda uma conferência com o subtítulo “Eixo da Beira Interior” (percebe-se agora a mudança de nome e de local), a introdução terminou sem que algo relevante fosse mostrado ou digno de se chamar apresentação de um projecto-piloto de mobilidade integrada. Seria a seguir?
Não. O painel passou para uma mesa-redonda, inicialmente prevista com os autarcas dos 5 concelhos e moderada pela presidente da AMT, Ana Paula Vitorino.
Seja pela dedicação às festividades do foral, seja por ter percebido que não valia a pena a deslocação a Santa Apolónia, o Município da Guarda não se fez representar presencialmente no evento (Belmonte, por outro lado, enviou o seu vice-presidente), optando por fazer chegar um vídeo onde Sérgio Costa enumerou por muitas palavras os passos concretos que a Guarda tem dado para este “debate necessário”. Destaque para o “emblemático […] incremento de Modos Suaves no acesso ao Parque Industrial da Guarda” ou, resumidamente, a ciclovia da VICEG. Ao mesmo tempo, lamentou que as candidaturas do Interior para aquisição de autocarros com emissões zero, através do PRR, tenham sido rejeitadas, esquecendo-se que nem dentro da sua cidade há união para garantir a robustez de uma candidatura.
Finda esta gravação de 16 minutos, Ana Paula Vitorino agradeceu “a intervenção completa” do presidente da Câmara Municipal da Guarda, pedindo simultaneamente aos restantes intervenientes que não fizessem o mesmo, sob um riso jocoso da sala do terminal de cruzeiros do porto de Lisboa.
A mesa-redonda entre os autarcas do restante Eixo da Beira Interior não trouxe nada de novo, sendo um misto de constatação de problemas há muito identificados, com destaque para o subaproveitamento da capacidade da Linha da Beira Baixa, seguida de justificações contraditórias para o não arranque de outro projecto-piloto de viabilidade autónoma questionável.
O painel terminou com uma rápida cerimónia de assinatura de cadernos (leia-se “protocolo de colaboração”) entre o regulador e os 4 autarcas presentes – sendo que 3 estão impedidos de continuar no seu cargo actual – e com a promessa que, até ao final do primeiro trimestre de 2025, se possa apresentar algo em concreto. Vamos ver se antes ou depois da reabertura total da Linha da Beira Alta e se terá em consideração o potencial de ligações inter-regionais que esta poderá colocar (ou não) ao dispor.
Se não havia nada em concreto, era preciso todo este mediatismo? Era preciso um investimento de cerca de 20 mil euros de publicidade a um evento inicial que, afinal, em vez de apresentar um projecto-piloto como fazia transparecer, lançou as bases para, eventualmente, se apresentar alguma coisa daqui a 3 / 4 meses? E, não havendo nada agora, passado mais de 1 ano desde a última conferência, é em 3 / 4 meses que vamos ter algo sólido, robusto e consensual? Ou este projecto-piloto terá o mesmo destino do Plano Ferroviário Nacional, que após reconhecidamente ter esquecido a Beira Interior, desapareceu (à data deste texto) do mapa?
“Andamos sempre ao contrário”, é uma frase proferida durante o painel, que caracteriza o rumo que este projecto-piloto parece vir a tomar, quando uma notícia sobre o evento destaca que “O primeiro passo é o lançamento do concurso para a construção da plataforma electrónica em que assentará este novo modelo de transporte intermunicipal”. Não havendo uma base sólida, como neste momento aparenta, nem uma sensibilidade na fase de levantamento de requisitos (uma chave para o sucesso de uma solução electrónica) e muito menos aparente envolvimento de potenciais utilizadores finais, ser este o “primeiro passo” é como começar a construção de uma casa pela antena de televisão (as que ainda têm).
A Beira Interior não precisa de andar de conferências em conferências que nem discos riscados. Precisa de soluções à medida e inovadoras que passarão sempre por mobilidade flexível, integrada e, sobretudo, articulada, consistente e acessível a uma população com perfis muitos distintos.
Não é uma região em que a fórmula aplicada nos grandes centros urbanos funciona. Longe disso. É preciso pensar fora da caixa; e até já há em prática uma solução fora da caixa, bastante incompreendida, que falaremos brevemente. Antes de estar na vanguarda, a região precisa de ser versátil na transição para tecnologias limpas e maduras e perceber que o transporte público não funciona só de segunda à sexta com uma ida de manhã e uma volta ao final da tarde. Até lá, a quota modal do transporte privado não fará inversão de marcha.
Numa sessão de “apresentação” de um projecto-piloto em que não se apresentou nenhum projecto concreto, a não ser orientações muito vagas, é caso para se dizer que a montanha pariu um rato. Felizmente a Guarda, anfitriã original, foi poupada a esse embaraço, calhando esse fardo ao porto de Lisboa. E o porto pariu um rato.