Apesar de idealizar o início desta jornada com temas de índole local, julgo premente começar primeiro por “arrumar a casa” em relação a um conjunto de temas dos quais muito se tem falado. A reflexão que cumpre fazer é, por isso, imperiosa e deve ser presidida com todos os órgãos, em especial os três que Camilo destacou: coração, cabeça e estômago.
Refiro-me à crise política desencadeada pela operação “influencer”, e o modo coletivo como a digerimos. Se sobre isto muito se tem falado (opiniões há para todos os gostos), certo é que, quanto à pureza das coisas, nem tudo foi dito.
Em termos gerais, lá que a justiça tenha de ser escrutinada, disso não há dúvida – sem descurar, claro, a sua opacidade intrínseca-, ocupando-se os mídia desse papel essencial.
Julgo, no entanto, que o faz(emos) de modo errado, sendo mais aparência do que realidade. Para citar Sophia, “o olhar toma nota e não vê”.
Por um lado, usa-se o pathos como critério de seleção dos processos, preferindo-se, para espuma dos dias, os processos que provocam mais “choque” ou “escândalo”, numa clara tabloidização da justiça. Já em relação ao tratamento, é claramente incipiente e parco, vingando o “não li o acórdão, mas…”, ou, numa palavra, o achismo. Tudo isto é “fácil, barato e dá milhões”, mas não serve a justiça. O verdadeiro e próprio escrutínio em nada se compadece com isto. Exige, pois, tempo e profundidade. Já para não falar das divulgações que alguns órgãos de comunicação social fazem de matérias sujeitas ao segredo de justiça – que não lhes chegam do vácuo, é certo-, e que tão bem explicou Mota Pinto, consubstanciam a prática de um crime.
Mas a principal razão pela qual trago este tema tem que ver com a constituição de arguido, e a sua perceção pública. Mário Cesariny refletiu sobre o que havia “entre nós e as palavras”. Mas e entre nós e o arguido?
Vivemos num Estado de Direito. E todos nós somos grandes entusiastas de tal significante – em particular os políticos, principalmente quando lhes aprouvera.
Porém, paradoxalmente, aqueles que, com grande alarido reconhecem o Estado de Direito, são os primeiros a condenar os que por ele são visados – condenação que será tanto maior quanto a inimizade ou o proveito que dela retirem- desvanecendo o seu seu significado, bem como o tão pregado “dar a César o que é de César e ao direito o que é do direito”. Temos por isso “dois pesos, duas medidas”, típico de qualquer Estado de Direito, não é mesmo?
Falemos, então, um pouco sobre isso. Seguindo a limpidez de Schopenhauer, em que “a complexidade é a má-fé do filósofo”, ser constituído arguido é simplesmente conferir ao suspeito um conjunto de direitos para se defender e uma presunção de inocência.
Todavia, para a vox populi, a presunção de partida é outra: a de culpa; e inverte- se o ónus, que originalmente impenderia sobre o tribunal na apreciação da prova e eventual condenação, para a esfera do próprio arguido, passando este a ter de provar à esfera pública a sua inocência, que imediata e kafkianamente o condenou.
Assim sendo, à luz da conceção de arguido, como se explica a demissão de António Costa com base num parágrafo meramente informativo da sua investigação?
Em abstrato, tal compreender-se-ia se considerássemos perecida a fidúcia e confiança que os Portugueses democraticamente lhe conferiram, uma vez a suspeição que sobre si pendeu. Porém, só chegaríamos a essa supressão se aplicássemos, uma vez mais, a presunção errada: a de culpa, pois só essa se compagina com tal resultado.
Por outro lado, cumpre dizer ainda que, nos termos da lei, qualquer pessoa pode ser alvo da abertura de um inquérito, por muito inverosímil que este se afigure, bastando-se, para o efeito, a noticia da prática de um crime. De facto, a Procuradoria-Geral da República, no concreto o Ministério Público (MP), ao tomar conhecimento da prática de um crime (por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia) é obrigado a proceder à abertura de inquérito. Tanto que, casos há em que se engendram, de forma – claro- perversa e persecutória, denúncias, com a finalidade de minar a credibilidade e imagem do agente político (como, alias, aconteceu com Rui Rio).
Por tudo isso, ao admitirmos cabalmente tal precedente, abriríamos a caixa de pandora para a instabilidade governativa.
Contra mim falo, é certo, quando digo que António Costa dever-se-ia ter mantido no cargo, mas não vale tudo em política. Assim,, o respeito pelo Estado de Direito Democrático, pela honestidade intelectual e pela ética republicana obrigam-me a que assim reconheça, principalmente depois de se tornar evidente a manha a que foi sujeito, tendo como expoente máximo as divulgações de escutas (sem qualquer relevância criminal), procurando obstaculizar a sua eleição no Conselho da Europa – que desde já congratulo.
Por último, e para que fique claro, apesar de achar que António Costa não deveria ter sido exonerado do cargo de chefe do Governo, creio, ainda assim, que teria inevitavelmente de se demitir, uma vez a irrespirabilidade do ar, a enorme pressão mediática a que foi sujeito, e o estado da arte. Pertenceria, todavia, ao Presidente da República – ilustre Professor de Direito, e a quem incumbe “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República
Portuguesa”- a sua recusa uma vez os motivos levantados. Vale apena referir que António costa nunca fora constituído arguido.
Lembrando as palavras de um pastor luterano alemão:
Primeiro levaram os socialistas, e eu não disse nada porque não era socialista.
Depois levaram os sindicalistas, e eu não disse nada porque não era sindicalista.
Depois levaram os judeus, e eu não disse nada porque não era judeu.
E um dia levaram-me a mim, mas já não havia ninguém para se preocupar…