O duplo sentido da palavra “Apogeu”

Poder apreciar o céu nocturno, livre de grande poluição luminosa, é um dos grandes privilégios da Beira Interior. Viajar debaixo deste Planetário natural é um exercício relaxante, muitas vezes benéfico, até para arrumar as ideias.

Há umas semanas, no meio desse exercício, uma pequena mas brilhante luz no meio da noite, despertou-me o interesse. Não era a Lua. Essa, por ser Nova, era tímida e estava escondida da estrela da qual reflecte luz. Era um pequeno abrigo de cimento, igualmente novo.

Estamos no apeadeiro do Rochoso, a paragem mais oriental da Linha da Beira Alta no concelho da Guarda. O silêncio é total; nem as águas do Noéme se fazem ouvir. Talvez por estarmos no Verão, o caudal deste rio assemelha-se ao desígnio de reavivar os seus Trilhos: pouco ou inexistente, neste momento.

Algo que também não existe nesta renovada gare são os comboios de passageiros. Estes deixaram de apitar em Abril de 2022, atirando os mais resistentes para um mini autocarro que demora entre o dobro e o triplo do tempo daqui à Guarda: 37 minutos de estrada, contra 14 de carril.

A razão está anexada à intervenção na Linha da Beira Alta, que fechou totalmente o troço entre a Pampilhosa e a Guarda. Uma obra com um período gestacional: 9 meses. Poucos acreditaram. O pó das obras dos viadutos da Abrunhosa atirou-nos para os olhos outro prazo: 12 de Novembro “sem informações que […] seja violado”. Só que foi: Já vamos com 27 meses de encerramento que, no final, trarão o mesmo tempo de viagem que a linha já tinha em 2010 (antes de começar a degradar-se), a mesma capacidade horária – embora permitindo maiores comboios de mercadorias – e um dos embriões do sistema de segurança Europeu (ETCS) em território nacional. O triplo do tempo inicialmente anunciado, até ver.

Uma das justificações para este encerramento, único na história da linha, esteve no Túnel de Mourilhe, em Mangualde. Talvez pelo pesar da idade, talvez por vergonha, a passagem estava a revelar-se cada vez mais apertada. Entre reparar a fundo ou demolir, optou-se pela segunda abordagem.

Mas, parece que a obra meteu água. O túnel demolido não estava a mirrar de vergonha. Alguma coisa tinha de o estar a comprimir. Agora com a clarabóia aberta, o malfeitor revelou-se e tem mais por onde se expandir, fazendo encolher de vergonha outro túnel uns quilómetros mais abaixo, que tinha sido reparado há meia dúzia de anos.

Vergonha, porém, é algo que não parece fazer parte do léxico dos responsáveis máximos desta e de outras obras que compõem a tragédia grega que é o Ferrovia 2020. Afinal de contas, há que destacar que, por mais derrapagens temporais que ocorram, a obra foi adjudicada 30% abaixo do valor orçamentado! E a mesma receita vai-se repetindo um pouco por toda a rede ferroviária nacional, sem que a tutela, independentemente do espectro político, ou os representantes eleitos pela população façam a tardia, mas muito necessária auditoria.

Lá diz o velho ditado: o barato sai caro. E enquanto as finanças parecem estar a salvo, o custo social agrava-se: a população teve de encontrar alternativas mais definitivas (e poluentes) para se deslocar, afastando-se do serviço de substituição, eventualmente esquecendo-se que alguma vez ali existiu comboio. Do lado das mercadorias, sem outro remédio, os operadores resignam-se forçosamente à alternativa colocada ao serviço a tempo do encerramento da Beira Alta. Ainda assim, a Linha da Beira Baixa, fruto de uma modernização pouco ambiciosa e do território que atravessa, não permite a mesma carga por comboio e aumenta consideravelmente distâncias, quando a origem ou destino se situa acima do Entroncamento.

Além desta condicionante à competitividade, o transporte ferroviário vê-se espartilhado pelo aumento da taxa de utilização de infraestrutura. Apesar das recomendações do regulador, a “portagem ferroviária” segue a tendência contrária da rodoviária (na região). Um caso onde se encerra ad-eternum o mais importante eixo ferroviário internacional e alarga-se sistematicamente o fosso entre o caminho de ferro e o alcatrão, prejudicando o meio de transporte mais sustentável, deve ser único a nível Europeu.

Às vezes, pergunto-me se Portugal só pertence à Europa porque está colado a Espanha. Aqui ao lado, o cenário é bem diferente, com cada vez mais incentivos à transição sustentável do pneu para o carril. Se em Portugal, o cenário é mais propício a comboios de camiões nas autoestradas, do outro lado da Península começou, há poucos dias, uma verdadeira autoestrada ferroviária, onde são os camiões que “apanham” o comboio e percorrem longas distâncias sem ferir muito o ambiente. E quem está aos comandos deste comboio? A portuguesa Medway, que está a perder a paciência com o que se passa no seu país de origem, ao ponto de equacionar mudar-se para Espanha, que não é tão hostil ao caminho de ferro. Atenção: Também não é um paraíso ferroviário. Mas isso será tema para outro dia.

No passado dia 3 de Agosto, celebraram-se 142 anos desde a inauguração do caminho de ferro da Beira Alta. A terceira vez consecutiva que tal efeméride foi assinalada sem comboios (nem carril, em algumas partes) entre a Pampilhosa e a Guarda. A última vez que esta via foi submetida a uma intervenção tão profunda, não deixou de cumprir a sua missão: Nos anos 90 electrificou-se, instalou-se um sistema de segurança capaz de prevenir tragédias como a de Alcafache e ainda houve margem para se corrigir o traçado, reduzindo o tempo de viagem e dotando a Beira Alta de um dos primeiros patamares de velocidade acima dos 140 km/h deste país. Tudo isto, sem interromper a circulação para além de umas pontuais janelas horárias. Desta vez, se quisermos demorar menos tempo, teremos de esperar, com sorte, pela próxima década.

O Estado tem agora (mais) uma dívida muito grande para com a região. Não basta repor os serviços que existiam. É preciso repensar, reflectir com humildade, entrar com força para relembrar quem se esqueceu e dar motivos à população para preferir o meio de transporte mais amigo do ambiente. E o poder local tem de ser interventivo, não para rentabilizar um investimento secundário avulso, mas para exigir que essa dívida seja saldada em tempo útil e com a devida justiça que a região merece, mesmo que, por mentalidade, não seja a medida que mais cruzes traz para a urna.

Do lado das mercadorias, a dívida também é grande. É imperativo criar condições favoráveis ao transporte ferroviário a tempo de evitar que os grandes “levantem tenda” de terras lusas. Senão, arriscamo-nos a ter longas estações para comboios que não virão. Pior: corremos o risco de ver o Porto Seco da Guarda prostrado ao seu estatuto legal (já em uso) e Salamanca, logo aqui ao lado, a movimentar carga como carrinhos de linhas. Para uns, pela Guarda, isso até poderá ser um cenário benéfico. Para eles. Não para a Guarda. E muito menos para Portugal.

Voltemos à pequena gare do apeadeiro do Rochoso. Este texto está repleto de epitáfios que podiam ser acolhidos pelas diversas sepulturas antropomórficas existentes nas redondezas. Mas essas já cá estavam séculos antes do cavalo de ferro galopar para lá do sol nascente do concelho da Guarda. Antes até do Noemi virar Noéme. E de epitáfios, está esta região saturada. Há muito.

Os díodos de luz do renovado abrigo radiam esperança. Mas, tudo ao redor, faz questão de nos lembrar a escuridão em que está mergulhado um dos eixos do futuro ferroviário Lusitano. Escuridão essa, hoje acentuada pela ausência do luar.

Chegados aqui, devem estar a perguntar: Então, no meio disto, onde fica a palavra “Apogeu”?

Quando a Lua atinge o seu ponto Apogeu, significa que está mais afastada da Terra. A partir daí, só tem uma opção: aproximar-se de nós.

Apogeu tem também outro sentido, figurativo, quando queremos assinalar o auge de algo. A Linha da Beira Alta não cai certamente nessa última definição. Figurativamente, é bom que tarde ou nunca caia.

Mas ao contrário da Lua, cuja visita ao ponto Apogeu tem data marcada para 9 de Agosto, saber quando é que estes carris voltam a estar mais próximos de nós é, neste momento, dar um tiro no escuro.