Frequentemente surge a questão: “Porque é que os comboios Intercidades páram em todas as estações e apeadeiros entre a Covilhã e a Guarda?”
Uma medida injustamente colada a um preconceito persistente é, na verdade, uma genial estratégia de optimização de recursos e uma benesse para a coesão, fruto da inexistente ambição na “modernização” que ressuscitou o troço de 46.5km entre a “cidade neve” e a “mais alta”.
Tem 8 minutos para continuar a ler? São eles que fazem a diferença.
Uma linha nova a pouca-terra
Em 2021, quando vieram a público as novas velocidades máximas da linha entre a Covilhã e a Guarda, fiz um estudo na agora parada comunidade LBB e obtive uma velocidade média sem paragens abaixo dos 84 km/h. Com a preciosa ajuda de Rui Sousa, que na altura partilhou uma análise de velocidade instantânea do troço, concluiu-se que um comboio não demoraria menos de 35 minutos, ignorando as leis da física.
Seja por falta de ambição, seja porque foi encarada como um desenrasque para a intervenção pesada na Beira Alta, a “modernização” do troço Covilhã – Guarda não contou com uma correcção significativa de traçado nem nos locais aparentemente menos onerosos; as curvas na planície entre as Quintas da França e da Ribeira são as mesmas de há 132 anos. Se nem nos sítios onde seria mais fácil corrigir a linha para se ganhar tempo e velocidade, o que dizer da escarpa granítica que tinha de escalar até se esconder debaixo da encosta do Barracão?
Dadas as características da via, um comboio não demora menos de 37 minutos a descer da Guarda para a Covilhã sem parar (nem se arriscar a descarrilar).
Sabe quanto tempo demora actualmente um comboio regional? 43 minutos, apenas 6 mais. E um Intercidades a parar em todas? 45. Foi talvez por isso que houve sensibilidade no momento de trazer de volta os passageiros que não viam o comboio há uma dúzia de anos.
Criatividade a rentabilizar os recursos
Aquando da apresentação do serviço em 2021, a CP optou por uma estratégia para gerar procura, apresentando uma oferta integrada, com todos os comboios a parar em todas as estações (depois de um pequeno desaire, corrigido a tempo) neste regressado troço. Sacrificando apenas 8 minutos de tempo de viagem dos Intercidades, conseguiu de uma assentada servir todas as paragens com comboios para as principais cidades da região e inclusivamente para Lisboa, dotando aldeias como a Benespera ou o Barracão de um estatuto de mobilidade quase singular a nível nacional. É um exemplo perfeito de “há males que vêm por bem”. Não sem as suas falhas, claro, que infelizmente põem em causa a mobilidade até regional (já lá vamos).
O Plano Ferroviário Nacional agora aprovado, no seu maior desprezo pelo eixo da Beira Interior, apesar dos reconhecimentos e promessas de melhorias na versão final (tudo caído em saco roto) ao menos reconheceu que “esta é uma forma eficiente de providenciar os serviços, já que evita a necessidade de ter serviços locais dedicados, com material circulante dedicado, ao mesmo tempo que evita transbordos em alguns dos percursos”.
Haja alguma coisa que se aproveite desta autêntica embófia para o eixo urbano mais importante do Interior do país, sendo também uma segurança (leia-se prémio de consolação para os defensores que vão resistindo) sob forma de lei, na hora que algum decisor se lembre de “cortar” paragens…
O projecto-piloto óbvio mas que provavelmente não vê o óbvio
Após o porto ter parido um rato em Novembro, eis que no início de Abril temos finalmente a apresentação da Fase 1 do Estudo sobre Mobilidade Integrada na Beira Interior, um projecto-piloto que tem o caminho de ferro como espinha dorsal da mobilidade, complementar com outro tipos de meios de transporte que assegurem o “last-mile” das deslocações, criando também um serviço Regional Expresso entre Guarda e Castelo Branco / Vila Velha de Ródão, com paragens apenas nas sedes de concelho (Belmonte, Covilhã e Fundão), num esforço de ter um meio ferroviário competitivo.
Uma ideia interessante no papel mas que borra por completo a pintura no troço Covilhã – Guarda, onde esses “comboios rápidos” demorariam 39 minutos, em vez dos actuais 43 com as restantes paragens.
E não nos ficamos por aqui: no caso de Belmonte, este serviço Expresso ia alienar “somente” mais de metade dos passageiros deste concelho (ver aos 13:02), colocando em dúvida a sensibilidade e escopo de análise que este aparente estudo teve.
Como é que ganhar 4 minutos ajuda a combater a pobreza da mobilidade?
Bom, a AMT responde na página 75 deste documento que “a existência deste serviço Expresso não impede que se mantenham alguns serviços por dia, com paragem em todas as estações e apeadeiros” mas que “exigiria, provavelmente, a duplicação da linha, o que se aponta apenas como um cenário de longo prazo, condicionado à existência de resultados positivos de um sistema regional de mobilidade integrada”, deixando adivinhar mais um desfecho de contínua migração para o transporte privado do que o objectivo contrário que aparentemente se pretende atingir. Se é imperativo ganhar uns meros 4 minutos, então que se introduza o conceito de paragens a pedido, utilizado em países de alto prestígio ferroviário, como a Suíça. As características do troço certamente o permitem, haja vontade.
Colmatar as falhas do que já existe
O troço Covilhã – Guarda não precisa de experiências Expresso ou segregação de serviços, cujos ganhos não variam mais do que 4 a 8 minutos. Precisa é de reforçar a oferta que já existe, colmatando lacunas de horários, nomeadamente com novos serviços na parte da manhã e sobretudo ao final da tarde, onde o penúltimo comboio parte da Covilhã a meio da tarde e o último depois das 23 horas, inviabilizando que uma pessoa que more numa aldeia como a Benespera, Maçainhas ou Malpique, mas que trabalhe / estude na Covilhã, consiga usar o comboio como meio de transporte.
É também preciso olhar as estações dessas aldeias como algo que não serve só a povoação que lhe dá o nome mas toda a sua periferia. Acabei de dar o exemplo de Malpique, que não tem paragem, mas é servida por Caria, ou já no concelho da Guarda, da Vela e Gonçalo, cujos habitantes vão apanhar o comboio à Benespera. E isso não é algo que uma pessoa sentada num gabinete da Avenida António Augusto de Aguiar de Lisboa saiba sem nunca ter vindo ao terreno.
Dirão os críticos: “Mas assim demora-se muito tempo da Guarda a Lisboa!” Sim, mas a culpa não é destas paragens que, por 4 a 8 minutos, têm uma oferta de mobilidade invejável. Com o regresso da Beira Alta (esperado ainda para esta era), será difícil justificar uma viagem da Egitana à Mouraria via Beira Baixa, a não ser por lazer. As melhorias, alguma vez a serem feitas, serão do Fundão para baixo, a começar pela abordagem à Serra da Gardunha.
“Mas porque é que um Intercidades devia parar em aldeias?!” Acho que a questão aqui é mais porque é que um comboio cuja velocidade média não chega aos 90 km/h se chama Intercidades… É urgente reduzir a distância temporal entre Lisboa e a Cova da Beira, sem esquecer Castelo Branco. Com a Guarda servida pela Beira Alta e com o esperado começo dos serviços para o Porto e Coimbra (porque não Figueira da Foz?), mais 2 grandes leques de mobilidade, 8 minutos não são nada, quando comparados com a qualidade de vida que estas aldeias, próximas das grandes cidades do Interior, podem oferecer a quem queira fugir da confusão e especulação imobiliária cada vez maior nas áreas metropolitanas.