O Teatro Municipal da Guarda foi contemplado com 800 mil euros pela Direção Geral das Artes – o patamar máximo do Programa de Apoio à Programação dos Teatros e Cineteatros da Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses – e só outras 11 salas de espetáculos do país o conseguiram: consultar aqui.
Este envelope financeiro merece ser celebrado e relembrado, independentemente de tudo, porque representa o trabalho árduo de muitos anos de programação autónoma, com atividade cultural e artística continuada e de excelência.
Não obstante, e vão perdoar-me, representa algo que está acima de tudo resto: a capacidade da Guarda e das pessoas que cá vivem e que cá trabalham.
A Guarda foi capaz. Teve a ambição, o rasgo, a qualidade, a classe, o brio de se candidatar a este apoio da Direção Geral das Artes com o escopo único de se projetar ainda mais e de fazer ainda melhor – cada vez melhor -, com as verbas que há tanto tempo procurava. Mas não se trata apenas de dinheiro. Falamos de reconhecimento. De justiça.
A Guarda ambicionou e venceu. A Guarda, tantas vezes esquecida e maltratada. Tantas vezes desgovernada, mal pensada, mal projetada, desconsiderada e até espoliada da sua memória e do seu futuro.
A Guarda ergueu-se e, num grito de Cultura, afirmou que é distinta e que é capaz. Que não é uma cidade qualquer. Ao contrário de muitas outras, a Guarda tem um Teatro de excelência que é referência, uma programação de primeira água e profissionais dedicados e competentes que a garantem autónoma e continuamente.
A notícia de que o TMG havia sido contemplado com 800 mil euros, num leque tão restrito e diferenciado, chegou, e chegou com ela o grande regozijo. Fez-se prova plena de que a Cultura é, afinal, um trunfo estratégico da Guarda. Algo nosso. Um traço distintivo, reconhecido nacionalmente.
A Cultura faz parte da nossa História recente e, se alguém ousar descrever a Guarda com o mínimo de completude, não poderá deixar nunca de o mencionar. É o Júri deste concurso que o exige. É a Direção Geral das Artes que o afirma.
O Teatro estava (E ESTÁ!) de parabéns, o momento era único e a alegria era extensível a todos os cidadãos. Ninguém ficou indiferente, porque nenhum guardense que ame a Guarda fica indiferente quando vê a sua terra triunfar. Nesta conjuntura, a Assembleia Municipal, reunida a 27 de abril de 2022, aprovava, e muito bem, um voto de louvor (ler aqui) ao Teatro e ao seu Diretor. O grupo municipal “Pela Guarda” (PG), quis estender o louvor ao Município, que entendeu ser o pai deste sucesso (consultar aqui) págs. 33 e 34.
O mesmo entendimento teve o próprio Presidente da Câmara, que dissera, antes, na reunião camarária de 18 de abril de 2022 (consultar aqui) págs. 14 e 15, que “(…) deve-se também a este Executivo, que fomos nós que tivemos a audácia, a astúcia, com o apoio técnico, fundamental para apresentarmos esta candidatura e para nos comprometermos com as verbas anuais. (…) O que importa foi o que o TMG conseguiu, o TMG que é da Câmara Municipal da Guarda. (…) Mas se nós ambicionamos apresentar a candidatura em dezembro último, (…), ao Júri nacional que aprovou a Candidatura, naturalmente que nós estamos vinculados ao que eles dizem e temos de fazer cumprir aquilo que eles dizem, e ainda bem que o dizem, para podermos colmatar todas estas debilidades que existem e podermos melhorar o serviço ao cidadão. E aqui não é só o cidadão da Guarda, porque isto foram candidaturas nacionais. É do Concelho a Guarda, é do Distrito, é da CIM Beiras, é de toda a Região Centro. Foi para isso que a Candidatura foi aprovada, e, portanto, estamos, estamos todos felizes e contentes, e acho que estamos todos satisfeitos por aquilo que a Direção Geral das Artes aprovou face à Candidatura que nós apresentamos em dezembro último.
Felizes e contentes. Todos, sem exceção. De facto, este discurso era e é condizente com o Programa que o Movimento Pela Guarda apresentou aos cidadãos em 2021. Apesar de já não estar disponível para consulta online, no que diz respeito à Cultura, refere o dito documento, na página 46, ser desígnio desta força política “estimular a rota de afirmação nacional da Guarda no panorama cultural, através de atividades culturais de impacto supramunicipal capaz de captar espectadores das regiões próximas”. Mais ainda, diz-se que há que “reforçar a imagem da “GUARDA” como destino turístico cultural nacional e internacional”. Promessas eleitorais. Ou já se esqueceram?
De pronto surgiu também a necessidade de uma conferência de imprensa (ver aqui) feita à medida do acontecimento. Era preciso dar as boas novas com a solenidade merecida. Disse-se, entre tantas outras coisas, que “este é o reconhecimento institucional do trabalho feito ao longo dos últimos 17 anos” e que o autarca (Sérgio Costa) quer ainda melhorar, assegurando «meio milhão de euros (300 mil da Câmara e 200 mil DG Artes) por ano para a programação». O autarca aplaude este apoio do poder central para a “Descentralização Cultural”, defendendo uma maior democratização da Cultura, que deve chegar aos diferentes públicos. A Cultura é para todos», defendeu”.
Mas o tempo, esse inexorável agente de degradação, foi passando. O vereador do PSD, Vítor Amaral, dava corpo às dúvidas e aos receios dos guardenses, interpelando o Presidente da Câmara nas reuniões do executivo. Como estaria o dossier? A Guarda já aceitara o dinheiro? Iria aceitar? Já iríamos poder beneficiar da primeira tranche dos 200 mil euros? Que diligências estariam a ser tomadas neste sentido?
A resposta definitiva chegou no fim do ano, na Assembleia Municipal de 20 de dezembro de 2022 (ainda sem ata online), em resposta às questões colocadas pelo PSD, e revelou um volte-face inacreditável. Pasme-se: a Guarda rejeitou a sua própria vitória e abraçou a derrota, perdendo por falta de comparência e covardia. A Câmara recusou o dinheiro que o TMG “ganhou” por mérito próprio. O descrédito foi regional e nacional, estando ferida de morte a credibilidade política da autarquia.
Se já não tínhamos qualquer peso político junto do Governo, arranjámos maneira de ficar ainda pior. A incompetência, plasmada em decisões absurdas como esta, tem um preço: a má reputação e o vaso do esquecimento. Aqueles que andaram durante três meses a pedir à população para não falar mal da Guarda, colocavam agora a Guarda nos jornais e televisões nacionais pelas piores razões.
Qual carro em contramão, o Município, percebendo as exigências e o arcaboiço político que a candidatura acarretaria, bateu em retirada. Culpados? Sempre os mesmos. Os técnicos do Município, com o programador do Teatro à cabeça. Culpados por terem sido competentes e por terem ganho “o prémio máximo”, os técnicos foram também culpados por terem elaborado um relatório – logicamente técnico -, no qual o Presidente se estribou para dar corpo à SUA decisão política de não cumprir com este desígnio.
Motivos: dinheiro, porque “esta Cultura” dá muito trabalho, é cara e não agrada ao público, que não se adequa a estes vanguardismos. Com efeito, o público da Guarda – desde logo, o mais jovem -, na cabeça de Sérgio Costa, vive nas trevas, num mundo de parolice, e é intelectualmente miudinho quando comparado, por exemplo, com o de Ílhavo, Ourém ou Leiria.
Ficámos então a saber que os Guardenses não estão à altura do desafio intelectual de ter no TMG uma programação que se consubstanciaria num cruzamento entre artes performativas (circo, dança, música, ópera e teatro) e artes visuais (arquitetura, artes plásticas, design, fotografia, cinema e novos media).
O mais incrível é dizer-se que esta candidatura tiraria totalmente a liberdade ao TMG e o palco aos artistas locais. Passo a citar, pois, a alínea e) do ponto 5, letra J, referente aos requisitos do Plano de Programação da Candidatura: “e) Inclusão de projetos de artistas e estruturas artísticas locais”. Assim, para que fique claro como a água (ver aqui).
Além do mais, o argumento dos custos caiu também por terra. Nesta história, cai tudo, menos a vergonha dos protagonistas. Como demonstrado, e muito bem, a 30 de dezembro de 2022, pelos vereadores do PSD, Sérgio Costa empolou num milhão de euros os valores envolvidos na candidatura (que ele próprio submeteu e conhecia: ver aqui.
Todavia, de pouco vale ficar a discutir o que nos custaria, porque não se trata de adjudicar garrafas de vinho, artefactos de granito ou programas de domingo à tarde. Trata-se do futuro da massa crítica da nossa terra e isso é inalienável.
A Cultura não é espuma dos dias ou algo de que se possa abdicar desta forma leviana, como quem fecha uma torneira ou abotoa uma camisa. A Cultura é um investimento estratégico que muda a vida das pessoas decisivamente – e nunca um custo.
Contudo, esta deriva já não é de agora: são estes responsáveis que perseguem, até hoje, o milhão de euros gasto na Candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura, quando, em eventos diversos, no espaço de um ano de mandato, e sem a execução de alguns que poderiam ser bem dispendiosos (desde logo, a Feira Ibérica de Turismo), já despenderam, no mínimo… um milhão de euros. Afinal, em que ficamos?
Por fim, convém dizer que já temos nova agenda cultural para os primeiros três meses de 2023, anunciada com o orgulho de “fazer cultura com os de cá e de apoiar as nossas associações culturais” (como se outros não o quisessem) e com o argumento básico e falacioso de que não podemos ter uma sala de 600 pessoas e programar para meia dúzia.
Foi então isso que se fez nos 8 anos em que Sérgio Costa esteve na Câmara da Guarda? Foi isso que fez o TMG todo este tempo, desde 2005? De facto, são afirmações muito tristes que ilustram na perfeição a miséria populista em que estamos mergulhados.
O Presidente promete agora cerca de 200 mil euros só para um trimestre e fala em 100 atividades repartidas entre TMG, BMEL e Museu da Guarda, como se tal fosse uma proeza histórica ou algo nunca visto. Mais uma vez, os números, sempre os números – seja para iludir, seja para agradar, seja para assustar.
Afinal, agora, os custos já não são questão – o problema estava única e exclusivamente em não se poder “mandar” na programação.
A Cultura, por aqui, está, como tantas outras dimensões da vida autárquica, ao serviço do eleitoralismo barato e da manutenção do poder. Essa sim, é a política da meia dúzia, porque subjuga o interesse coletivo às ambições pessoais e desmedidas.
Será boa a Cultura que der votos. Será má a Cultura que der frutos.
A Guarda, que tanto precisava de uma equipa governativa, tem na Câmara Municipal uma equipa de campanha eleitoral.