Um Foral “for all”

Neste, que foi o nosso dia, e numa altura em que a História de Portugal é alvo de revisionismo e desdém constantes, a mensagem que ecoa na minha mente é de homenagem ao Rei, que não é fundador, mas é criador.

Criador desta nossa realidade – da realidade Guarda. Guarda, não enquanto comunidade urbana, porque essa já existia, mas enquanto concelho – realidade político-administrativa organizada, com fito nacional, porque submetida ao REX, num verdadeiro contrato social que se vem construindo e aperfeiçoando, vagarosamente, até aos dias de hoje.

A crónica do ilustre Guardense, Cronista-mor do reino, RUY DE PINA (que viria a nascer, dois séculos depois, nessa mesma cidade à qual D. Sancho deu foral), descreve o monarca como alguém que “entendeo elle em defender com as armas seo Reyno e governalo direytamente com justas leys, porque para uma cousa e para outra tinha singular perfeyçaõ (…) principalmente procurou que ho Reyno para as cousas temporaes fosse bem aproveitado (…) e para esso deu muitos foraes, e muy favoraveis ha muitas Cidades, Villas e Lugares do Reyno, que elle novamente fundou, povorou, e fortalezou.”

De facto, o Rei D. Sancho I é das figuras mais incríveis e apaixonantes da nossa História porque fez por sê-lo. Merece esse lugar de destaque, tal como quase todos os reis da primeira dinastia. Tão ou mais importante do que assegurar a nacionalidade, foi lutar bravamente para que ela se afirmasse, entre sucessos e retrocessos, em esparsos, longínquos e incomunicáveis bocados de terra. Lutar, não apenas contra os almoádas, mas também contra todos os mais diversos poderes laicos e eclesiásticos que sempre disputaram o controlo dos territórios.

Sancho Afonso, não estava destinado a reinar nem tinha, quando nasceu, nome parecido. Quis o destino que assim fosse (não era nem de perto o primogénito), e quis também o destino que assim se chamasse. Sancho, o I, o Povoador (ou repovoador), teve, só ele, 19 filhos, e criou verdadeiras células vivas, organizando o território com uma clarividência muito à frente do seu tempo, tendo por base os forais.

Com efeito, os forais, ou cartas de foral, são o conjunto de prerrogativas e deveres que afirmam Portugal como território “unido” na sua ligação à Coroa que, por seu turno, é garante dessa unidade nacional embrionária, nos primórdios da definição das nossas fronteiras, não só terrestres, mas também identitárias.

Nas palavras do douto historiador JOSÉ HERMANO SARAIVA, os forais dão-nos, pela primeira vez, “um país unificado sob a égide do Rei e onde o verdadeiro senhor é o povo de Portugal”, povo esse que consegue, por via deles, fugir à arbitrariedade dos senhores.

O nosso foral é a afirmação plena de que nestas terras, disputadas pelos nobres e pelos bispos, quem aplica a justiça e faz a coleta dos tributos é o Rei – é Portugal. A título de exemplo, quem viesse de fora, teria de pagar, “De carga e peão paguem de portagem duas mealhas (…) De cavalo, 1 soldo. De macho, 1 soldo. De asno e boi, seis dinheiros”.

Ao mesmo tempo, é o monarca que, guerreiro, recruta e anima a terça parte da população guardense para a necessária guerra – o fossado – “uma vez por ano”, estipulando as condições desse recrutamento, ao mesmo tempo que isenta os “Cavaleiros da Guarda e as mulheres viúvas de dar pousada, a não ser por mandado do juiz”.

O foral, como afirma MARIA LUÍSA ALMEIDA, coloca a população da Guarda “numa posição de vantagem face aos que não eram de cá”. Pois é aí que está toda a beleza. Com efeito, é uma carta atribuidora de muitas vantagens, pois só assim se fixaria por aqui a população. Um problema que subsiste até aos dias de hoje, mas que, à época, D. Sancho soube resolver com mestria, oferecendo aos guardenses regalias de carácter geral – um verdadeiro estatuto especial (como a isenção de certos tributos, “omees (homens) da Guarda non den (devem), en todo nosso reyno, portádigo”) – e individual, fomentando ainda a vinda de todas as pessoas do reino para a cidade, sendo aqui que, a meu ver, o foral se afigura decisivo, porque faz da Guarda uma porta aberta a todos.

Pois é isso mesmo que dá sentido ao título deste texto. Hoje, mais do que nunca, temos aqui a metáfora perfeita. Compete aos executivos camarários e aos sucessivos governos, respetivamente, criar uma Guarda for us and for all 1) onde os de cá sejam amplamente valorizados, com os mais diversos regulamentos que os apoiem em todas as suas atividades pessoais e profissionais (é disto exemplo o que já temos ao nível da ação social e das bolsas de ensino superior, mas é preciso muito mais); e 2) onde se criem condições de todo o tipo para que sejamos uma verdadeira porta aberta a todos.

Muitos desdenhosos dirão que é impossível, mas atenção: se antes o nosso Sancho queria povoar uma estratégica zona de fronteira, em tempo de guerra, e conseguiu, será de admirar que não o consigam os nossos governantes em tempos calmos de paz.