Faltam elementos e sobra linha: o que se anunciava, em 2017, como um monumento à centralidade ferroviária da Guarda, resume-se, passados sete anos, a uma dispendiosa estrutura de betão no centro de uma rotunda que não carecia de intervenção e sobre a qual foi agora estacionada uma velha locomotiva a vapor, cujo restauro ficou visivelmente incompleto.
Em comparação com o estado em que a ruína metálica se encontrava (foto da esquerda, na estação de Devesas, em Vila Nova de Gaia, antes da cedência por comodato ao Município da Guarda), a reparação pode considerar-se bem sucedida:
Porém, mesmo não sendo objetivo colocar a locomotiva a funcionar, o restauro parece ter-se ficado por uma interpretação ligeira. A menos que a intervenção ainda esteja por concluir, basta confrontar o resultado agora visível na rotunda de acesso à estação da Guarda com as imagens da mesma máquina a vapor quando estava baseada na estação da Régua e circulava na Linha do Douro, nas décadas de 50 e 60 do século passado:
Depois do restauro, a Câmara Municipal da Guarda recebeu a locomotiva sem muitos dos seus elementos distintivos, que não seriam difíceis de replicar – como a característica numeração de série – ou mesmo obter.
O tender, o vagão que transportava o carvão que alimentava a caldeira e o depósito de água para produção de vapor, foi colocado sem um dos dois tampões de choque traseiros. Seria, porém, possível encontrar uma peça adequada nas proximidades. Bastaria pedir à Infraestruturas de Portugal um dos vários topos de linha antigos que ainda se podem encontrar (também em estado de degradação) na estação da Guarda:
A história da locomotiva junto ao parque urbano do Rio Diz tem uma década, quando a Câmara Municipal da Guarda, então presidida por Álvaro Amaro (tendo o atual presidente, Sérgio Costa, como vereador com o pelouro do urbanismo) iniciou, em 2014, uma série de ornamentações em rotundas.
Estas intervenções em várias zonas da cidade ascenderiam a milhões de euros. Só a “homenagem à história ferroviária da Guarda”, como era referida, iria custar não menos de 600 mil euros. Opções que eram criticadas pela oposição. Haveria outros investimentos mais necessários, elencava o arquiteto Joaquim Carreira, à época vereador eleito pelo Partido Socialista:
Mas o presidente da Câmara enquadrava a obra num “eixo estratégico” que dizia ter o apoio da União Europeia:
O projeto para a rotunda oval de ligação entre a Avenida de São Miguel e a Avenida da Estação consistiria na construção de uma enorme estrutura em betão, simulando uma ponte ferroviária. Sobre esse troço de linha seria estacionada uma locomotiva, à qual ficaria acoplado um elemento artístico inspirado num vagão.
O conjunto, que receberia iluminação cénica, ficaria orientado na direção do centro da cidade, conforme o projeto então apresentado em sessão do executivo municipal:
O elemento central seria a locomotiva 1505 da CP. Construída pela American Locomotive Company (ALCO), entrou em circulação após a segunda guerra mundial, como parte de uma estratégia de aquisição de material circulante a gasóleo (com fundos do Plano Marshall), devido à escassez de carvão.
Para os entusiastas do caminho-de-ferro é uma das mais icónicas máquinas que circularam nas linhas portuguesas. Retiradas do serviço comercial no ano 2000, só dois exemplares não tinham sido desmantelados ou vendidos. Um encontra-se exposto no Museu Nacional Ferroviário, no Entroncamento; e a CP 1505 estava estacionada no Barreiro, de onde iria ser transportada para a rotunda da Guarda.
A requalificação viária da interseção das avenidas da Estação e de São Miguel com a Rua 4 de Outubro não tinha sequer uma década. Datava de 2007, no âmbito das intervenções do programa Polis e da abertura do Parque Urbano do Rio Diz.
A solução foi uma rotunda oval, simples, pontuada por duas fileiras de magnólias que davam continuidade estética aos cedros que ladeiam a avenida aberta na década de 1960 para ligar o centro da cidade à estação.
Foi sobre esse espaço verde, ainda recente, que a Câmara Municipal decidiu construir a colossal – tendo em conta a finalidade – estrutura de betão, só para implantar uma réplica de troço de linha férrea:
Perante o gasto irreversível, ainda houve quem sugerisse ao Município que repensasse o projeto para conciliar as homenagens a dois marcos da História daquela zona: a ferrovia e a indústria automóvel.
A ideia poderia passar pela colocação, também, de um vagão de mercadorias aberto, dos muitos que formavam as composições (puxadas por locomotivas a diesel da série 1500), onde chegavam as peças provenientes de França e partiam as viaturas montadas na pioneira fábrica das Indústrias Lusitanas Renault. Para fazerem parte do conjunto, poderiam ser restauradas algumas unidades dos primeiros modelos produzidos na Guarda, nomeadamente os míticos 4L e R5:
Só que não houve abertura para tal. E mesmo o projeto concebido pela área do Urbanismo da Câmara entrou numa sucessão de contratempos.
O acervo das oficinas da CP no Barreiro encontrava-se, afinal, em processo de classificação. E a ALCO 1505 foi incluída na lista de peças com valor histórico a preservar em contexto museológico.
Foi já em 2019, com Carlos Chaves Monteiro na presidência, que o Município da Guarda recebeu uma proposta alternativa, para a cedência (com a mesma figura jurídica de contrato de depósito) de uma outra máquina a diesel, a 1453, adquirida nos anos 60 pela CP à companhia britânica English Electric.
A série 1400 foi das mais numerosas da CP (chegou a ter 67 unidades ao serviço, algumas das quais montadas em Portugal, na fábrica da SOREFAME, na Amadora) e a mais usada na Linha da Beira Baixa e na Linha da Beira Alta.
A locomotiva CP 1453 tinha sido restaurada e pintada com o esquema de cores original (azul e branco, com o antigo logótipo dourado dos Caminhos de Ferro Portugueses) e foi utilizada no Comboio Presidencial e noutras composições de evocação histórica e fins turísticos, sobretudo na Linha do Douro, servindo também o serviço comercial.
Juntamente com a máquina a diesel era proposta a aquisição de uma carruagem “Schindler”, semelhante às que integram essas composições turísticas.
Mas os tempos já não eram de ornamentação de rotundas com material ferroviário. O governo de António Costa reativou antigas oficinas da CP em todo o país, criou o Centro de Competências da Ferrovia em Guifões (Matosinhos) e deu início a um vasto plano de restauro de material circulante.
Carlos Chaves Monteiro já admitia como improvável a concretização do contrato de cedência, a não ser que existissem uma locomotiva e uma carruagem em definitiva inoperacionalidade. A ordem do Ministério das Infraestruturas, a partir de 2019, foi mesmo de restituir à circulação todo o material possível:
E a Guarda ficou literalmente a ver passar o comboio com as carruagens “Schindler”: em março de 2022, a Associação Portuguesa dos Amigos do Caminho de Ferro promoveu um passeio com partida e chegada no Porto, através das linhas da Beira Baixa e da Beira Alta. Mais de 400 pessoas embarcaram na composição com 9 carruagens restauradas, tracionada por uma locomotiva elétrica Alstom igualmente recuperada pela CP.
Com mais de meio milhão de euros investidos na rotunda, não restou ao Município da Guarda outra hipótese senão aceitar a muito degradada locomotiva a vapor CP 294, de fabrico Henschel, datada de 1913.
A Câmara suportou os custos de restauro e mandou colocá-la na enorme estrutura, onde agora sobra muita linha. Acabou por ficar de traseira para a cidade, ao contrário do projeto original. Não em posição de chegada, mas de partida.